Categoria - Bibliologia
A CONCEITUAÇÃO DA TEOLOGIA
Richard J. Sturz*
ABORDAGEM TEOLÓGICA
Fazer teologia é tentar colocar em termos sistemáticos a revelação vinda de Deus, a fim de compreender quem Ele é, bem como quem é o homem e o mundo no qual este vive. Poderíamos acrescentar uma série de definições para apoiar o que foi dito acima. Contudo, apresento apenas duas definições que representam abordagens opostas em sua compreensão do que é teologia.
Strong, por exemplo, definiu teologia como “A ciência de Deus e da relação entre Deus e o universo”.1 Clodovis Boff, por outro lado, define teologia de maneira quase que contrária. Segundo ele, a Teologia. da Libertação “se exprime mediante uma série de princípios que tomam a forma de afirmações ou teses, que pretendem informar e orientar a prática teológica.”2 Nada a respeito da ciência de Deus de que Strong falou. Seu intuito é o de dirigir-se tão somente ao homem e sua vida de comunidade. Strong, por sua vez, só fala de Deus e a relação deste com o universo. É claro que, no desenvolver de suas obras, tanto Boff fala de Deus como Strong das obrigações humanas. Mesmo assim, o ponto de vista de ambos permanece como uma bússola que teleguia seu desenvolvimento desses temas.
Naturalmente, todos os seres humanos fazem teologia a seu modo, ao levantarem as grandes questões da vida. Em geral, a principal falha com as perspectivas assim esboçadas decorre de uma visão limitada, de um lado, e um interesse autocêntrico do outro. Falta um lastro mais amplo para sustentar as grandezas elo assunto. Quem levanta o grito: “Por que eu? faz teologia. Mas o faz sobre um alicerce pequeno e frágil. Dito isso, há ainda um outro perigo, o risco do profissionalismo; risco esse que corre aquele que tem uma visão ampla e um lastro adequado, passível de descambar para o academicismo.
Para se conceituar um conteúdo abrangente, exige-se uma visão clara dos parâmetros do estudo e uma abordagem adequada. Trataremos mais adiante da questão dos parâmetros. Quanto à questão da abordagem “adequada, “quero apenas observar que abordagem precisa satisfazer dois requisitos básicos. Primeiro, não deve deturpar ou forçar os dados que venham a ser usados na formulação da sistemática. Segundo, a abordagem e leve permitir a aplicação dos dados ao contexto hodierno – mais uma vez, sem deturpá-los ou forçá -los. O apóstolo Paulo faz uma afirmação que, ao mesmo tempo, adverte aquele que deseja fazer teologia, como também lhe dá os parâmetros para cumprir essa tarefa: “Ao contrário de muitos, não negociamos a palavra ele Deus com o intuito de lucro; antes, em Cristo falamos diante de Deus com sinceridade, como homens enviados por Deus.” (2Co 2:17).
Queremos analisar, brevemente, três expressões desse versículo. Primeiramente, em Cristo falamos. A referência aqui é dupla: primeiro, à teologia ele Paulo, que concentra-se na expressão “em Cristo”. Há alguns anos, James Stewart captou isso muito bem em seu famoso livro A Man in Christ.3 Aliás, praticamente toda a teologia paulina pode ser entendida a partir dessa frase. Segundo, a frase fala de um ponto de vista Cristocêntrico. Parece dizer que tudo é irradiado de Cristo e retorna a Ele. É Ele que “enche todas as coisas, em toda e qualquer circunstância” (Ef 1:23; cf Cl 1:16s). Até mesmo a ordem elas palavras empresta ênfase a esse Cristocentrismo: “em Cristo falamos”. O “falamos” destaca outro aspecto fundamental: a teologia há de ser proclamada. Isso não é opção particular nem a busca ele verdade particular.
Diante de Deus com sinceridade é o segundo aspecto dessa abordagem. Uma tremenda responsabilidade acompanha o “estar de pé” na presença de Deus, Essa responsabilidade faz com que o teólogo trema e deixe ele lado a loquacidade e a superficialidade (Hb 10:30s). Reconhecer que a autoridade ela teologia parte elo próprio Deus coloca aquele que pretende fazer teologia numa posição de grande responsabilidade, tanto vertical quanto horizontal. Se tem por propósito falar ele Deus num ambiente cristológico, e sob a autoridade do próprio Deus, ele não pode ensinar qualquer coisa com o intuito de agradar a seus ouvintes.
Enviados por Deus é o terceiro aspecto da abordagem paulina. A fonte da tarefa teológica é o próprio Deus. Aquele que se revelou aos antepassados e profetas e, por último, em Jesus Cristo – Ele mesmo é a fonte do conteúdo da teologia. Aquele que pretende anunciar: “Assim diz o SENHOR” – precisa, primeiro, ouvir com todo o cuidado, o que o Senhor lhe tem dado para proclamar. Propor uma teoria “nova”, simplesmente por ser nova ou contextualizada, é assumir um grande risco. Ao ler muito daquilo que nos é passado como “teologia” na atualidade, logo vem à mente a questão que Satanás propôs à mulher: “É assim que Deus disse… ?” [Gn 3:1] De passagem, deve-se notar que Paulo não limitou a tarefa aos homens. Ele simplesmente escreveu “como de Deus ” [hôs eh Theou ], sem qualquer referência ao gênero da pessoa enviada. O masculino de “enviados” fica por conta ela língua portuguesa.
Onde o teólogo poder á encontrar o conteúdo do seu “Assim diz o SENHOR” senão do texto bíblico? Por um lado, os conceitos (matéria) surgem ela revelação dada na Palavra. Por outro lado, a aplicação (forma) vem ela realidade da comunidade a quem essa teologia é dirigida. Assim sendo, há dois perigos que elevem ser evitados: um seria a elaboração dogmática sem levar em conta a situação peculiar da comunidade. O outro é dedicar-se à contextualização da fé, ignorando o lastro das Escrituras.
Aquele que quer fazer teologia precisa cuidar para não permitir que o seu esforço culmine num academicismo elitista. Esse é o risco de trabalhar visando as elites teológicas, os professores e autores de textos. Paulo, também, condena quem faz da teologia um mero “ganha-pão”, aquele que vende seus esforços para agradar quem quer que seja (2Co 2:17).
OS PARÂMETROS DA TEOLOGIA
Alguns menosprezam a teologia por não ser prática. Basta estudar a Bíblia, pregar o evangelho e desafiar os crentes à vida cristã. Mas essa atitude é simplista. Aquele que procura nada mais do que compreender a Bíblia e pregar o evangelho, já está fazendo teologia. A diferença é que este a faz a partir de um empirismo, às vezes muito ligado a um ou outro, ou ainda a uma necessidade social. Mas a teologia necessita ser abrangente. Ela deveria encarar a totalidade das Escrituras, bem como a realidade total da comunidade. Isso exige uma dedicação tanto às implicações como às inter-relações dos conceitos proclamados.
Faz muito tempo que Berkouwer lançou um desafio quanto ao caráter decisivo do Evangelho. Segundo ele, o Novo Testamento não nos traz apenas uma discussão a respeito da verdade. As Escrituras colocam a verdade e o erro como antagonistas claros e decisivos.4 Em outras palavras, o teólogo não pode ocultar nem adulterar a Palavra de Deus, tampouco apagar ou suprimir a diferença entre o que agrada e desagrada a Deus. Ao contrário, na presença de Deus ele insiste cm manifestar a verdade nua e crua. O evangelho não está encoberto a não ser para os que se perdem (2Co 4:3). Já Oséias coloca a responsabilidade sobre os que devem ensinar (Os 4:5s). O apóstolo insiste que se alguém lhes anunciar um evangelho diferente daquele que já receberam, que seja amaldiçoá-lo.\’ (Gl 1:6-9).
Qual é, então, o critério para escapar do abismo de um “Evangelho diferente”? É evidente que não é a qualidade do teólogo nem a beleza de sua mensagem. Procura-se o critério da teologia num só lugar: o evangelho ela verdade. A teologia não deveria ser julgada nem pela beleza da sua apresentação tampouco pela qualidade ou fama do teólogo. João concorda com Paulo ao indicar, claramente, que o que distingue o verdadeiro teólogo do falso é a cristologia. Quem nega que Jesus é o Cristo (o Messias), esse é o anticristo. Aquele, porém, que confessa o Filho e o Pai, conforme João, é de Deus (1Jo 2:22s).
No entanto, o temor do arbítrio e do absolutismo deixa, às vezes, o teólogo sem condições de falar a verdade absoluta ela parte de Deus. Ele sente que precisa falar a verdade, mas não tem condições de falar com absoluta convicção. Há diversas fatores que tornam difícil ao teólogo falar categoricamente o “Assim diz o SENHOR”. Um deles é o relativismo característico do século XX, que põe a verdade do outro contra a minha. Outro fator é a consciência da finitude humana diante da grandeza de Deus e ela revelação. Isso leva ao reconhecimento de que a sua compreensão da verdade é limitada. Pior ainda é quando um teólogo fala em termos absolutos e com plena certeza sobre assuntos acerca dos quais o evangelho não o autorizou a falar. Isso acontece, principalmente, na hora de aplicar a teologia, baseada na revelação, à realidade vivida pelo próprio teólogo. Eis o dilema: ele precisa, simultaneamente, ser ousado quanto ao falar a verdade, e cauteloso a fim de evitar o erro e a mentira.
À afirmação de Paulo em 2 Coríntios 2:17 deveria ser acrescentada a problemática dos eventuais ouvintes ou leitores. Naturalmente, aquele que faz teologia o faz com a finalidade de comunicá-la à determinada audiência. No esforço por definir essa audiência, vemos que fazer teologia não deve ser propriamente uma tarefa acadêmica. Erra quem a prepara para si mesmo ou para seus colegas. Teologia se faz para ser proclamada; seja para a Igreja, seja para o mundo. Por isso, quem faz teologia tem de fazê-la num âmbito eclesiástico. Em tempos recentes, algumas faculdades de teologia se mudaram para o âmbito acadêmico das universidades. Esse fato diminuiu muito sua submissão à Igreja e desfigurou a audiência para a qual os teólogos deveriam escrever.
Para que a teologia seja atualizada e contextualizada é necessário levar em conta a realidade do ouvinte. Deve”se dar atenção à linguagem e à mensagem para que possam ser compreendidas. Do contrário, ela ficará deturpada ou perdida. É bom lembrar que é possível deturpar a mensagem usando as próprias palavras do texto, seja da Bíblia seja da tradição.
Cada contexto levanta questões peculiares. Portanto, é necessário que o teólogo, ao trabalhar sobre a revelação da verdade em Jesus Cristo, tenha em mente as perguntas e a problemática de seu ouvinte, para que não venha a responder perguntas que estes não estão fazendo, e deixar ele responder às que são cruciais para seus ouvintes.
O PROPÓSITO DA TEOLOGIA
Abraham Kuyper, em seu livro Sacred Theology, observa que o termo theologein pode indicar, etimologicamente, tanto a atuação do teólogo, que fala a respeito de Deus, e em nome deste, como também o pensar a respeito ele Deus.5 Assim, fazer teologia refere-se tanto ao produto como ao processo envolvido. Faz teologia aquele que pensa e reflete sobre Deus, quem quer que seja. Mas aquele que proclama, ou escreve, para comunicar o seu pensamento a respeito de Deus tem maior responsabilidade.
No seu primeiro livro das lnstitutas, Calvino insiste que o propósito da teologia é o conhecimento de Deus. Para esse fim, ele dedica a totalidade do primeiro dos quatro volumes das Institutas. Em português, isso dá um total de quase trezentas páginas. Quanto à questão do conhecimento de Deus e o conhecimento de nós mesmos, Calvino chega à conclusão de que são correlatos, um depende do outro.
Muito antes de Calvino, Tomás de Aquino reclamou contra o abuso de se tentar fazer a natureza da teologia consistir no conhecimento de outro objeto de investigação que não seja o próprio Deus.6 Nas palavras de Tomás de Aquino: “Deus é o assunto desta ciência.” Ele admite que coisas e símbolos, bem como a obra de salvação, ou o próprio Cristo, sejam discutidos dentro da ciência da teologia, mas “somente naquilo em que se referirem a Deus.” Mais adiante, trataremos da afirmação ele Karl Barth, de que Deus nunca é objeto, mesmo que da reflexão.
No início do século XIX, houve um deslocamento quase total do enfoque da teologia. Com Friedrich Schleiermacher entrou o subjetivismo psicológico; com Georg Hegel, a especulação antropológica. Dessa forma, a partir do princípio do século XIX, o homem se tornou o assunto principal da teologia. O resultado foi funesto. Barth concluiu que “ninguém escapou da influência de Schleiermacher”, e acrescentou que Emil Brunner foi o primeiro teólogo cujas premissas estavam relativamente livres de Schleiermacher.7 Eu diria, entretanto, que as teologias existencialistas ele Brunner, Bultmann e Tillich não escaparam da influencia antropocêntrica de Schleiermacher. Nem mesmo o próprio Barth se livrou de todo dessa influência.
Embora a Teologia da Libertação seja pós-existencialista, nem Gutiérrez, os Boff e Rubem Alves escaparam de Schleiermacher. Na realidade, a Teologia da Libertação parece uma volta mais forte ao antropocentrismo do século XIX. Quando se lê esses autores, percebe-se que a sua teologia não passa de uma ética social. A Teologia da Libertação trata especificamente dos deveres do homem em relação à sociedade. Tudo mais apenas orbita em torno dessa visão ética. Por essa razão, Fierro insiste que ela não chega a ser teologia propriamente dita; não passa de “linguagem teológica”.8 Falta-lhes pelo menos nos seus escritos, uma visão mais completa e sistematizada de Deus, do universo e do homem.
Kuyper crê que o propósito da teologia é o conhecimento de Deus. Nisso ele segue Calvino e Tomás de Aquino, quando este último declarar a que o restante não passa de andaimes.9 Mas se o conhecimento de Deus é o alvo da teologia, aquele que faz teologia está diante de um problema aparentemente intransponível: não há fenômenos em relação à pessoa de Deus que se possa analisar. Deus não é um objeto a ser investigado pelo livre-julgamento do homem. Portanto, teologia não é propriamente uma ciência igual às ciências ditas exatas. Logo, o teólogo se encontra absoluta e completamente dependente do beneplácito de Deus.10 Numa palavra, como falar de Deus em termos absolutos e concretos, quando não há fenômenos a serem analisados?
Qual é, então, o resultado da teologia? Karl Rahner, escrevendo sob a perspectiva Católica Romana, lembra-nos que “um enunciado dogmático é um enunciado que tem a pretensão de ser também verdade no sentido formal, que conhecemos pela linguagem e pelo conhecimento profano de cada dia”.11 É claro que Rahner entende “dogma” como o resultado concreto da reflexão teológica e da proclamação eclesiástica. O enunciado dogmático, segundo Rahner, tem cinco características naturais e essenciais:
1. Este enunciado deseja ser verdadeiro. É uma declaração da verdade absoluta de Deus;2. É um enunciado de fé, tanto da fides quae creditur quanto da fides que creditur (respectivamente, a “fé que é crida” – objetiva; e a “fé pela qual se crê” – subjetiva);3. Um dogma é um enunciado eclesiástico e, por isso, obrigatório dentro da Igreja Católica;4. Um enunciado dogmático mergulha num mistério e, portanto, não pode ser clara e cientificamente demonstrado;5. Um enunciado dogmático é distinguido da palavra original da revelação da fé devido à posição particular e única das Escrituras.12
Fica evidente que Rahner participa da linha que entende a teologia como ciência. Ele, portanto, pensa ser possível explicitá-la em palavras humanas e verdades absolutas. O conhecimento de Deus é, nesse caso, descritivo e não interpessoal, é absorvido pela cabeça e não pelo coração. Não podemos desprezar o intelecto, mas também não podemos nos esquecer do papel do sentimento envolvido no conhecer a Deus.
Sobressaem aqui as dificuldades que teríamos, da posição evangélica, especialmente com a terceira, uma vez que destacamos o sacerdócio universal dos crentes. Como herdeiros da Reforma, nos lembramos da necessidade de cada um examinar as Escrituras para verificar suas conclusões teológicas. Ainda mais, devido à finitude humana, com todas as suas limitações, torna-se necessário lembrar que qualquer enunciado dogmático é sempre humano e, por isso, passível de erro. Essa é a razão porque os evangélicos nem mesmo falam de enunciados dogmáticos.
A teologia tem por fim levar o homem ao conhecimento de Deus. Esse conhecimento não é tanto uma lista de dados e fatos a respeito de Deus, tampouco algo que possa satisfazer a nossa curiosidade. Ao contrário, é fazer o homem chegar a ouvir e entender a revelação ele Deus em Jesus Cristo. Tem por fim transformá-lo, para que este seja santo e irrepreensível diante dele, para o louvor da glória de Sua graça (Ef 1:3-6). Enfim, o fazer teologia é, portanto, uma reflexão que visa chegar ao conhecimento interpessoal de Deus, objetivando modificar o homem, transformando-o conforme a imagem de Deus.
A TEOLOGIA: Contextualizada ou Secularizada?
A teologia sempre sofreu nas tentativas de contextualizá-la a determinadas culturas e épocas. Cada povo é diferente; e mesmo dentro de um mesmo pais há uma variedade de culturas, que fazem com que os diversos grupos percebam a realidade ele maneiras diferentes. As diferenças podem ser mínimas, mas são o suficiente para revelar a alma das culturas. A vila suíça de Cháteau d\’Oex tem um teleférico que vai até o pico de uma montanha. Na estação de partida do bondinho há um aviso revelador, escrito em três línguas. Em inglês: “Favor não colher flores”; em alemão: “É proibido colher flores”; e em francês: “Os que amam as montanhas deixam-lhes as flores”.
A questão da contextualização, embora muito falada hoje em dia, é uma tentativa tão antiga quanto Agostinho e, antes dele, Orígenes e Tertuliano. Nem sempre, porém, o teólogo compreendia inteiramente o que estava fazendo. Cada um deles, pelo menos até o século XIX e inicio do século XX, pensava que estava produzindo urna teologia concreta e absoluta, que seria de valor para todos os tempos e todos os povos. Isso se deveu, em geral, ao fato do teólogo ser limitado em sua compreensão das diferenças culturais e filosóficas, bem como as profundezas da própria revelação divina.
Devido à condição humana sendo o ser humano finito e caído, é impossível produzir uma teologia que seja absoluta e universal. É verdade que alguns teólogos têm conseguido chegar mais perto do que seria sistema outros. As teologias de Agostinho, Tomás de Aquino e Calvino, por exemplo, perduraram por séculos. Por outro lado, há alguns sistemas teológicos que não perduram por mais de dez anos. Um exemplo seria a teologia da “Morte de Deus”. Via de regra, pode-se dizer que quanto melhor contextualizada à determinado grupo ou cultura, menos tempo sobreviverá dada teologia. Em outras palavras, quanto mais o teólogo refletir sobre Deus, e o homem diante dele, há de produzir uma teologia que permanece por mais tempo. Quanto mais o teólogo reflete sobre o homem, e sua realidade atual, menos tempo há de perdurar a sua teologia. É claro que esses dois eixos tem de ser levados em conta, mas o principal deveria ser o do Deus revelado em Jesus Cristo.
Foi justamente a tentativa de contextualizar a teologia que resultou na sua secularização. O processo de secularização já havia avançado muito na primeira metade do século XX quando o Evangelho Secular explodiu nos anos 60s, uma década que já estava esvanecendo. Livros como A Morte ele Deus, de Hamilton e Altizer, e A Cidade elo Homem, de Harvey Cox, chegaram a ser publicados em português.13 Mas a sua teologia não conseguiu ressoar no coração brasileiro. Nem os próprios teólogos secularizados americanos conseguiram “engolir” essa tentativa de eliminar o transcendente.
A partir de Resistência e Submissão, de Dietrich Bonhoeffer, houve uma série ele tentativas que procuravam levar a sério o conceito secular que o autor apenas esboçou.. Nessas “cartas da prisão”, Bonhoeffer começa a refletir sobre a realidade moderna. Segundo ele, uma vez que o mundo chegou à maturidade, deve, agora, viver como adulto, i.e, sem Deus. Isso levantou uma série de questões em torno elo que seria uma religião sem Deus. Essas teologias seculares tendem a seguir o conceito Hegeliano ele um “Deus imanente” neste mundo, que, ele um ou outro modo, está ligado ao próprio ser do mundo.
Timothy Hamillton, em seu livro Revolt Against Heaven, alista os movimentos ele teologia secular dos últimos dois séculos, indo, assim, para um período bem anterior ao ela proposta de Bonhoeffer. Ele discerne três pressupostos principais que os neoliberais compartilham como próprio Scheilermacher. Primeiramente, o ponto de partida para a teologia secularizada localiza-se na autoconsciência humana: “Quem sou eu?”; “Para o que estou aqui?”; e um número de outras questões relacionadas ao homem e à sociedade em que ele vive.
Um segundo pressuposto da teologia secularizada é que sua cristologia baseia-se unicamente na natureza humana ele Jesus. Assim, por exemplo, na Teologia da Libertação Jesus é visto apenas como um homem que aceitou um risco por nós. Sua divindade não exerce nenhum papel na Teologia da Libertação. Ele é sempre visto como um homem completamente igual a nós. Nesse ponto ela segue a cristologia elos escritores do século XIX. Desde David Strauss, esses escritores escreveram “vidas de Jesus”, nas quais o protagonista é um simples homem.
O terceiro pressuposto dos teólogos secularizados é que a história deve ser compreendida como a revelação progressiva da estrutura do universo. Logo, a revelação divina nas Escrituras é colocada como um mero ponto no desenvolvimento evolucionário do pensamento e do universo.14
Como Hamilton demonstra muito bem, uma teologia que parte somente de uma consciência humana de Deus não pode avançar sem a revelação divina nas Escrituras. Deus é muito mais do que um mero eco da própria humanidade. Por isso, Ele não pode ser descoberto dentro da simples experiência religiosa. Barth, certamente, está correto quando aponta para a necessidade da revelação. Barth descreve a Deus como o totaliter aliter, i.e., o “totalmente outro”. Logo, a autoconsciência do homem não revela a Deus, pois não passa de um espelho no qual o ser humano vê o seu próprio rosto.
A teologia secularizada encontra na encarnação o padrão normativo da imanência divina. Recusa ver no nascimento de Jesus um evento único, sem repetição na história. Jesus não é percebido como divino, ele apenas aponta para o divino. É exatamente isso que Donald Baillie procura demonstrar em seu livro Deus estava em Cristo. Jesus, para Baillie, não era Deus nem Deus-Homem. Ao contrário, Deus estava em Jesus de uma maneira mais completa e perfeita, mas sempre da mesma maneira em que Ele está em nós. O título do livro já indica o teor da teologia de Baillie.15
A Teologia da Libertação, que é totalmente secularizada, fala de Deus, mas não leva o homem ao conhecimento de Deus. De fato, Deus não é central, tampouco normativo. Seu Cristo é um homem; alguém que morreu por ter assumido o risco de ficar do lado dos pobres. A leitura dessa teologia mostra claramente o antropocentrismo de seus escritores, e uma visão totalmente circunscrita pela realidade do terceiro mundo. Entretanto, sem ter muito êxito em seu propósito, ela se mostrou incapaz de elevar o homem acima dos problemas sócio-políticos: para que este pudesse contemplar e experimentar o conhecimento de Deus.
No livro Como se faz Teologia, Alszeghy e Flick entendem que a teologia é uma atividade de fé, e não um discurso sobre Deus ou outras verdades. Para eles, é uma atividade existencial do crente, que ele realiza dentro elo contexto do comportamento estruturado de uma vida cristã. Em decorrência disso, concluem eles que o teólogo deveria ficar equidistante do racionalismo e do fideísmo. E concluem, mais adiante, que a existência cristã não é a premissa da teologia e, sim, a teologia em germe.16 Se a teologia não for um discurso sobre Deus (e outras verdades), como poderia haver uma atividade de fé? Esse discurso torna-se necessário, exatamente, para permitir que o teólogo fique equidistante, entre o racionalismo, de um lado, e o fideísmo, do outro.
Em segundo lugar, dizer que a existência cristã é a teologia em germe, é dizer demais. Como se sabe se esta ou aquela comunidade tem uma “existência cristã”, se não houver um modelo pelo qual se possa avaliá-lo? Como se pode saber se determinada praxis é, em si, cristã? O discurso sobre Deus e sobre o homem diante de Deus, é necessário para esses julgamentos. Esses autores católicos lutam, naturalmente, contra todo o peso do acúmulo de dogmas defendidos pela igreja durante os séculos. Mas, aparentemente, eles vão longe demais ao afirmar que qualquer comunidade que se diz cristã tem, em sua vida comunitária, o germe da teologia.
Schleiermacher e seus seguidores procuraram o ponto de partida para a teologia na autoconsciência humana. Alszeghy e Flick, seguindo o caminho dos outros teólogos da libertação, procuraram-no na experiência da comunidade cristã. Os dois lados – protestante e católico – rejeitam a revelação como normativa para a teologia. Se a Bíblia deve ser levada em conta, exige-se uma nova hermenêutica, como demonstra Juan L. Segundo, em Libertação da Teologia.17
A necessidade de contextualizar a mensagem impõe uma tarefa difícil ao teólogo. Este fica no dilema entre ser fiel à revelação e, ao mesmo tempo, honesto em relação à realidade em que vive a comunidade. Nessa dialética, é preciso segurar em tensão constante esses dois aspectos do dilema – algo quase que impossível de se fazer. Mesmo assim, é um caminho que precisa percorrer aquele que pretende fazer teologia.
A FUNDAMENTAÇÃO DA TEOLOGIA CRISTÃ
A reflexão sobre Deus não começou com os teólogos da Igreja – nem com Platão ou Aristóteles. Essa tentativa de se chegar ao conhecimento de Deus já existia muito antes deles. Quando se trata, porém, de uma sistemática elaborada dentro da estrutura da Igreja Cristã, entende-se que ela deveria partir das Escrituras, a final, a Igreja se fundamenta na revelação de Deus. Essa constatação levanta diversas consequências. Há aqueles que se lançam diretamente à sistematização de textos bíblicos, como se a Bíblia fosse um texto escrito em nossos dias; não dão qualquer consideração à interpretação histórica ela Igreja, nem para analisar a filosofia que informou os escritos bíblicos, ou prestar atenção à mentalidade do povo. Pior ainda, não examinam sua própria ideologia.
Se uns vão direta e descuidadamente, ao texto bíblico como autoridade suficiente, a Igreja Católica Romana, por sua vez, coloca as Escrituras debaixo de sua própria autoridade.18 Essa atitude ele colocar-se acima das Escrituras foi fruto da interpretação alegórica, que já despontava antes de Agostinho e alastrou-se durante a Idade Média. Uma vez que essa hermenêutica roubava o texto bíblico de seu sentido literal, a Igreja precisava exercer a sua autoridade sobre a Bíblia, a fim de manter a fé. A ocasião já passou, mas a solução permanece.
Os reformadores todos lutaram contra essa pretensão eclesiástica. O argumento de Calvino foi o de tratar a questão a partir do testemunho do Espírito. Assim, ele explica que, embora posterior à Igreja, as Escrituras têm total autoridade sobre a Igreja (Institutas 1,7). Nesse mesmo capítulo, Calvino declara falsidade ímpia sustentar que a credibilidade das Escrituras dependa do arbítrio das Igreja (1,1).
Na tentativa de sintetizar essas duas abordagens (a prioridade da Bíblia vs. a da Igreja), há aqueles que, como Schleiermacher, partem da experiência religiosa individual; ou, no caso ela Teologia da Libertação, partem da experiência coletiva da comunidade. Nunca tem faltado uma linha que procure desenvolver teologia a partir de uma ou outra ideologia.
Esse resumo panorâmico não deixa de ser simplista. No entanto, não é difícil observar quanto a ideologia e a mentalidade “deturpam” a reflexão teológica. A tarefa é ainda mais complicada do que parece. Ao iniciar o estudo da sistemática, todos nós nos aproximamos do assunto com preconceitos e pressuposições, às vezes subconscientes. Isso, porém, não altera o fato de sua existência, nem diminui a força com que manipulam os resultados.
As pressuposições e os preconceitos podem ser divididos em quarto áreas: a cosmovisão (termo técnico que veio do alemão Weltanschauung), as Escrituras, a tradição e a experiência particular. Cada uma dessas áreas de experiência e pensamento representa um complexo de noções, conscientes ou não, que tende a pre determinar os resultados da empresa teológica. A construção da sistemática é, muitas vezes, determinada por elementos de pre-conceito na própria mentalidade do teólogo ou da comunidade eclesiástica a que ele pertence.
Algumas pessoas acham que o estudo de pressupostos teológicos é uma perda de tempo. Basta abrir a Bíblia e ver o que Deus nos ensina. Acontece que a pre-disposição determina em grande medida o que o leitor vai encontrar na Bíblia. Por esse motivo, Calvino considerou ímpia a tentativa católica de reduzir as Escrituras à autoridade da Igreja. O Concílio ele Trento replicou, reafirmando a autoridade da Igreja, e dizendo que as Escrituras, lidas juntamente com a tradição, seriam a fonte de ensino da própria Igreja.19
Ao embarcar na tarefa de elaborar uma teologia sistemática, é necessário estar sempre conscientes dessas quatro áreas de pressuposições. Qualquer uma delas poderá desviar o estudioso da verdade revelada em Jesus Cristo. É preciso manter uma visão clara e abrangente dessa problemática, e conduzi-la à submissão em Jesus Cristo (2Co 10:5). Torna-se evidente que os problemas da relatividade e da exatidão ela teologia cristã estão interligados com a situação decaída e finita do teólogo, por um lado, e com a realidade divina revelada do outro.
O estudo ela fundamentação é uma necessidade imprescindível para tornar a sistemática verdadeiramente cristã. Não basta dizer que uma praxis é cristã, simplesmente, porque surgiu dentro da comunidade cristã. Tampouco basta dizer que urna doutrina é cristã porque baseia se em alguns versos citados. Os resultados do estudo da sistemática serão julgados e, também, serão determinados pelo grau de conformação da teologia à revelação em Jesus Cristo. É Jesus Cristo quem garante a veracidade de mensagem proclamada. Jesus trouxe a última e mais perfeita revelação de Deus ao mundo (Hb 1:1s). Os Evangelhos ensinam que Jesus, e somente ele, pode nos revelar a Deus (Mt 11:27; Jo 1:18 ).
A tarefa é clara. Ao longo do estudo da teologia sistemática precisa-se ficar com um olho em Jesus Cristo revelado e outro nas quatro áreas abordadas acima: a cosmovisão, as Escrituras, a tradição e a experiência particular, seja ela a do teólogo ou a da comunidade. Somente assim, cada um é capaz de chegar perto da mensagem divina, revelada nas Escrituras consciente de suas pre-compreensões peculiares.
CONCLUSÃOEm Lucas 13:35, Jesus tomou a frase: “Bendito o que vem em nome do SENHOR”, do Salmo 118:26, como que referindo-se a si mesmo, à sua encarnação e sua segunda vinda. Vivemos hoje no interregnun entre esses dois eventos, estando mais perto da segunda vinda do que da encarnação. Poderia-se aplicar, por extensão, a declaração do Salmo 118, usada por Jesus ao ministério da Igreja, uma vez que ela é o “Corpo de Cristo,” seu representante até que ele próprio venha. Uma possível justificação para essa aplicação parece ser dada pelo próprio Jesus em João 20:21. À comunidade dos discípulos de Jesus é recomendada uma série de atuações específicas, que devem ser feitas “em nome de Jesus”. Eis uma seleção de sete que a Igreja deveria fazer quando “vem em nome do SENHOR”:
– Crer em seu nome (Jo 1:12);- Orar em seu nome (Jo 14:13s; cf Rm 10:13);- Adorar a Jesus (Mt 18:20; Jo 12:28; cf Mt 28:19 e 2Co 13:13);- Servir a Cristo (Mt 19:29; Cl 3:17);- Servir a Cristo ao servir ao próximo em seu nome (Mt 18:5; Mc 9:37);- Pregar em se u nome (At 9:15; Rm 9:17). Aqui é necessário ter cuidados especiais, pois até os falsos profetas pregarão em nome de Cristo (Mt 7:22; 24:5);- Expelir demônios em seu nome (Mc 9:28s).
Além dessa atuação pela Igreja, sempre feita em nome de Cristo, o NT também indica que os membros desse corpo serão, ao mesmo tempo, odiados por causa do nome dele (Mt 10:22-24) e protegidos pelo próprio Senhor (Jo 17:11).
Aquele que faz teologia assume uma responsabilidade muito grande. Ele vem no lugar do próprio Senhor, tanto à Igreja como aos de fora. Traduz, para ambos os grupos, a revelação em termos contextuais, para que o povo de Deus possa saber o que crer e o que fazer no mundo onde vive. Deve sempre lembrar, porém, que receber o título de “teólogo” não se constitui num elemento mágico, que o transforma, automaticamente, em porta-voz de Deus. É bom lembrar que essa designação corresponde à de “profeta” no NT. Os apóstolos advertiram que haveria falsos profetas no meio da Igreja (1Jo 4:1; 2Pe 2:1; cf At 20:29s).
Assim, fazer teologia em nome de Cristo é atuar como se fosse ele mesmo agindo em nós (Gl 2:20). É como se fosse uma explicitação da auto-revelação de Deus. Que tarefa nobre! Que responsabilidade tremenda assume aquele que quer ser teólogo!
*Richard J. Sturz, Th.M., com vários estudos doutorais, foi durante muitos anos professor titular de Teologia Sistemática na Faculdade Teológica Batista de São Paulo, autor e conferencista conhecido. Tradução de Estevan Kirschner.
1 A. H. Strong, Systematic Theology (Revell, 1954 fed. orig. 19071), III:12 Clodovis Boff\\\’. Teologia e Prática (Petrópolis; Vozes, 1978), 21.3 James Stewart, A Man in Christ (Londres: Hodder & Stoughton, 1951 [ed. orig. 19351), 331.4 G.C. Berkouwer, Curren Religious Thought,” em Christianity Today, 21 de Maio de 1965, 47.5 Abraham Kuyper, Sacred Theology (Wilmington: Associated Publishers and Authors, s/d [orig. 1894), 89.6 Summa Theologiae, questão 1, artigo 7.7 Karl Barth, Protestant Thought from Rousseau to Ritschl (Nova York: Harper, 1959), 307.8 A. Fierro, The Militant Gospel (Nova York: Maryknoll, 1977), 316s.9 0p. cit., 93.10 Ibid., 98.11 Kar Rahner, O Dogma Repensado (S.P. Paulinas, 1970), 24.12 Ibid., 28-50.13 W.Hamilton & T.Altizer A Morte de Deus (RJ.: Paz e Terra, 1966): H. Cox, A Cidade do Homem (RJ.:Paz e Terra, 1968).14 K Hamilton, Rcvolt Against Heaven (G.R.: Eerdmans, 1966), 96-111.15Donald M. Baillie, God was in Christ (Nova York: Scribner\\\’s 1955), 154s, cf 117,127-132. Esse livro foi publicado no Brasil sob o título Deus estava em Cristo (S.P.: ASTE, 1964). 22,33.16 Z. AJszeghy & M.Flick, Como se faz Teologia (S.P.: Paulinas, 1979), 14-17 Juan.L. Segundo, Libertação da Teologia (S.P.: Loyola, 1978), 12s.18 Veja como a Igreja Católica se coloca, simultaneamente, como serva da Bíblia e como sua exclusiva intérprete, em “Dogmatic Constitution on Divine Revelation” em The Documents of Vatican II (Nova York: Guild Press, 1966), cap. 2.19 Concílio de Trento (Faculté de Théologie: Paris 1842 2 vols.), seção 4, abril de 1546.
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