Categoria - Pentateuco

JESUS E O FIM DOS SÍMBOLOS DA RELIGIÃO

Magno Paganelli

“Não se perturbe o coração de vocês. Creiam em Deus; creiam também em mim. Na casa de meu Pai há muitos aposentos; se não fosse assim, eu lhes teria dito. Vou preparar-lhes lugar. E se eu for e lhes preparar lugar, voltarei e os levarei para mim, para que vocês estejam onde eu estiver. Vocês conhecem o caminho para onde vou”. Disse-lhe Tomé: “Senhor, não sabemos para onde vais; como então podemos saber o caminho?” Respondeu Jesus: “Eu sou o caminho, a verdade e a vida. Ninguém vem ao Pai, a não ser por mim”. (João 14.1-6)

Introdução

No texto que abre este artigo, lemos sobre a conversa que Jesus teve com judeus, quando explicou aspectos da esperança cristã e mais, sobre a trilha a ser percorrida por pessoas de fé. Para nós essas definições são simplificadas, reduzidas ao menor denominador e facilmente compreensíveis, porque estamos há séculos meditando sobre o que elas significaram. No entanto, para os seus ouvintes, tanto judeus quanto os próprios discípulos, muitas das declarações dadas em primeira mão por Jesus sobre o Reino, a fé, a conversão (novo nascimento) entre outros temas, com frequência os deixou embaraçados.

Apesar do grau de elaboração e sofisticação do pensamento judaico da época, já naquele tempo o apóstolo Paulo, ele mesmo um judeu zeloso, declarou o seguinte sobre seus conterrâneos: “Porque lhes dou testemunho de que têm zelo de Deus, mas não com entendimento” (Rm 10.2).

Diante disso, o presente artigo pretende provocar uma reflexão sobre as razões pelas quais permanecemos na religião ou no ambiente religiosos, frequentando cultos periodicamente e como isso se liga ao que Jesus quis dizer aos seus ouvintes à época.

1. Procurando definir termos

Quando pensamos na esfera do sagrado, três termos precisam ser considerados.

O primeiro é espiritualidade. Todo indivíduo a possui, é atributo inato ao ser. O ser humano é um ser espiritual, ainda que se recuse a admitir. Uma das maneiras de expressar a sua espiritualidade é por meio da religião.

Isso nos leva ao segundo termo, religião. Foram propostas dezenas de definições para religião. A maioria delas foi dada pela sociologia e uma dessas definições compreende religião como uma maneira de organizar a vida em sociedade (Durkheim). No campo da teologia não teríamos muitos problemas se definíssemos religião como uma prática que nos aproxima de Deus e do relacionamento com o próximo. Se considerarmos a religião cristã, especificamente, essa mesma definição deveria incluir “em Cristo” como o meio para a aproximação de Deus. Aliás, isso está contido na fala de Jesus que abre o artigo (“Eu sou o caminho”).

Por fim, temos religiosidade, que são os aspectos da prática da uma religião, qualquer que seja. Esses aspectos têm perfis variados. Toda religião tem aspectos comuns, como ritos, mitos e ditos. Elas também têm aspectos particulares, fruto da influência ou a interferência de fatores externos ou locais. Entre eles, temos:

Influência da época. A procura por compreender fenômenos naturais ou ajustar-se a Leis vigentes. Por exemplo, as igrejas cristãs podem ser forçadas a ajustar seu discurso por causa de uma lei contra preconceito ou intolerância. Com o passar do tempo, essa mudança pode ser naturalmente incorporada a religiosidade cristã (isto é um exemplo).
Influência da geografia e fatores ambientais. A religião no Egito desenvolveu a ideia de vida após a morte, após extensa observação do ciclo da natureza, de morte e renascimento (como as plantas, a Lua, o Sol, a cheia e a vazante do Nilo). A religião no Egito é tranquila, enquanto que na Mesopotâmia se desenvolveu o culto com sacrifícios de sangue, pois a frequência de tremores de terra e tempestades que destruíam casas e plantações os fez imaginar divindades iradas que precisavam ser acalmadas com a oferta de sacrifícios.
Influência da etnia, como vista na religião dos europeus que colonizaram povos indígenas nas Índias e nas Américas e impuseram suas crenças. Surgiu daí um sincretismo variado e podemos notá-lo em cultos de matriz afro quando sincretizados com o Catolicismo Romano.
Influências de fatores políticos e econômicos podem ser observadas na inserção do protestantismo no Brasil. Os protestantes foram proibidos de manifestar publicamente a sua religião. Não podiam edificar igrejas com torres e cruzes, os pastores não podiam trajar-se como na Europa, onde vestiam-se parecidos com os padres. Optaram por usar terno e gravata, como os políticos, e isso é notado até hoje em muitas igrejas. A influência da teologia da prosperidade reflete as condições favoráveis da economia. Seria impensável essa abordagem no Brasil da década de 1980, quando a inflação superava a casa dos 80% ao mês. Quando a economia se estabilizou, reuniram-se as condições para uma mensagem prometendo prosperidade, carro e casa própria, o que antes seria mais difícil.

2. A iniciativa de Deus em favor do homem

Toda tradição primitiva tem uma maneira de explicar a origem do mundo, dos seres humanos, dos conflitos etc. Chamamos isso de cosmogonia. Grande parte das cosmogonias se apoia nos conflitos. Ao contrário, a cosmogonia judaica difere das demais ao apresentar uma narrativa de harmonia, não de conflito. Quando Deus, por meio de seu Espírito, pairava sobre o caos (Gn 1.1-2), ele provocou a ordem, criando o cosmo (cosmos é o oposto de caos).

Com o pecado entrando na criação, o homem ficou separado de Deus. Veio, então, a Lei do Decálogo, que iria adverti-lo sobre a morte. O Decálogo é um código negativo, não diz o que fazer, mas o que não fazer: Não farás isso, não farás aquilo. O Decálogo pressupunha a separação entre criatura e Criador. Era preciso organizar a vida, pois ela estava em situação caótica.

Deus propôs ao homem o mecanismo para tentar a aproximação, o altar rústico:

Um altar de terra me farás, e sobre ele sacrificarás os teus holocaustos, e as tuas ofertas pacíficas, as tuas ovelhas, e as tuas vacas; em todo o lugar, onde eu fizer celebrar a memória do meu nome, virei a ti e te abençoarei. E se me fizeres um altar de pedras, não o farás de pedras lavradas; se sobre ele levantares o teu buril, profana-lo-ás. (Ex 20.24-25)

No livro de leis, o Levítico, lemos em 17.11 a razão para os sacrifícios de sangue no culto judaico: “Porque a vida da carne está no sangue; pelo que vô-lo tenho dado sobre o altar, para fazer expiação pelas vossas almas; porquanto é o sangue que fará expiação pela alma”. No Salmo 119.109, o autor explica a semichá: “A minha alma está de contínuo nas minhas mãos; todavia não me esqueço da tua lei”.

A semichá era a transferência da alma do pecador daquele que oferecia o sacrifício para o animal sacrificado. Este, então, morria substitutivamente pelo pecador, cuja vida era preservada. O sangue do animal, derramado sobre o altar, era o símbolo da vida pecadora pagando o preço por seu pecado.

Sobre o sangue derramado, Ezequiel 18.4 se expressou assim: “Eis que todas as almas são minhas; como a alma do pai, também a alma do filho é minha: a alma que pecar, essa morrerá”.

Em outras culturas houve o mesmo caso de derramamento de sangue. Na Grécia antiga, a própria filosofia deu testemunho do sangue sobre o altar. O cretense Epimênides alcançou êxito ao sacrificar ovelhas sobre altares em Atenas, e Paulo comentou isso em seu discurso naquela cidade quando mencionou um altar ao Deus desconhecido (At 17.22-34).

3 Como os símbolos funcionam em nossa vida de fé?

Deus usou os antigos sacrifícios para aplacar sua ira (Rm 3.25, “em sua tolerância”) até que viesse o sacrifício perfeito de Cristo (Jo 1.29). Os sacrifícios compunham parte dos ritos elaborados com uma finalidade pedagógica, a fim de educar os antigos hebreus na lei exigida por Deus.

Por esse motivo, quando Paulo disse que a Lei foi o “aio” (Gl 3.24), ele quis dizer que com ela, a Lei, Deus pretendia conduzir aquele que tem fé à esperança em Cristo: “De maneira que a lei nos serviu de aio [a NVI diz “tutor”, do grego paidagogós], para nos conduzir a Cristo […] Mas, depois que a fé veio, já não estamos debaixo de aio [tutor]” (Gl 3.25).

Jesus era o alvo da religião, desde a antiguidade. Foi ele quem disse “Examinais as Escrituras, porque vós cuidais ter nelas a vida eterna, e são elas que de mim testificam; e não quereis vir a Mim para terdes vida” (Jo 5.39-40). As Escrituras não dão vida, mas apontam para aquele que dá a vida, Jesus.

Sombras e bens futuros (Hb 10.1-10)

Um texto que não deixa dúvidas sobre o papel da Lei e dos seus ritos para a vida de fé em Cristo é Hebreus 10.1-10. Os versículos 1 a 4 dizem:

Porque, tendo a lei a sombra dos bens futuros e não a imagem exata das coisas, nunca, pelos mesmos sacrifícios que continuamente se oferecem cada ano, pode aperfeiçoar os que a eles se chegam. Doutra maneira, teriam deixado de se oferecer, porque, purificados uma vez os ministrantes, nunca mais teriam consciência de pecado. Nesses sacrifícios, porém, cada ano, se faz recordação [comemoração] dos pecados, porque é impossível que o sangue dos touros e dos bodes tire pecados. (ênfases minhas)

No Dia do Perdão (Yon Kipur), o sumo-sacerdote pedia perdão pelos pecados da nação. Os pecadores realizavam a semichá. Quando Jesus dirigiu-se até João Batista para ser batizado, aconteceu o seguinte: “No dia seguinte João viu a Jesus, que vinha para ele, e disse: ‘Eis o Cordeiro de Deus, que tira o pecado do mundo’” (Jo 1.29). Os pecados, que anteriormente eram “cobertos” pela tolerância de Deus (hb. kaphar, Rm 3.25), com o sangue derramado por Cristo ele foi “tirado”, como disse João. Por isso, na epístola aos Hebreus, lemos que Jesus e sua obra são superiores às melhores instituições de Israel, dos sacerdotes aos profetas, de Melquisedeque a Moisés, da Escritura dos pais aos homens da galeria da fé.

Hebreus 10.1,4 afirma claramente: “Ora, sendo a lei sombra dos bens futuros, e não a imagem exata das coisas boas […] é impossível que o sangue de touros e bodes tire pecados” (ênfases minhas). Os símbolos da antiga religião judaica eram sombras, mas o que Jesus fez é o bem real e necessário, aliás, suficiente para salvar pecadores. Do mesmo modo, o significado de coisas maravilhosas do passado só se realizam na pessoa de Jesus “pela graça”:

A confecção das roupas de Adão e Eva (somente Cristo nos veste espiritualmente);

Deus fechando a arca pelo lado de fora (Cristo é a nossa proteção);

O cordeiro substituindo Isaque no sacrifício no Moriá (manifestação da graça, pois o Cordeiro substituto seria conhecido no futuro);

A água saindo da Rocha no deserto (Jesus disse “Quem tem sede venha e beba”);

Os anjos subindo e descendo a escada de Jacó (Ele disse “Daqui em diante vereis os céus abertos e os anjos de Deus subirem e descerem sobre o Filho de Deus”);

O maná no deserto (Ele declarou “eu sou o pão da vida”);

A serpente de Moisés (em Hebreus lemos: “olhando para Jesus, autor e consumador da fé”);

O candelabro emitia luz no templo (Jesus afirmou “eu sou a luz do mundo”);

O propiciatório sobre a arca (João disse que “Ele é a propiciação pelos nossos pecados”).

Refeição ritual

Por fim, o principal ritual do culto judaico, a Páscoa, reunia os hebreus em torno da mesa, onde sentavam-se e comiam a carne do cordeiro. Em João 6.53-55, Jesus disse:

Na verdade, na verdade vos digo que, se não comerdes a carne do Filho do Homem e não beberdes o seu sangue, não tereis vida em vós mesmos. Quem come a minha carne e bebe o meu sangue tem a vida eterna, e eu o ressuscitarei no último Dia. Porque a minha carne verdadeiramente é comida, e o meu sangue verdadeiramente é bebida.

Esse foi o anúncio do fim do principal rito da religião judaica. E ele aconteceu no meio da celebração de uma Páscoa:

Enquanto comiam, Jesus tomou o pão, e, abençoando-o, o partiu, e o deu aos discípulos, e disse: Tomai, comei, isto é o meu corpo. E, tomando o cálice e dando graças, deu-lho, dizendo: Bebei dele todos. Porque isto é o meu sangue, o sangue do Novo Testamento, que é derramado por muitos, para remissão dos pecados. E digo-vos que, desde agora, não beberei deste fruto da vide até àquele Dia em que o beba de novo convosco no Reino de meu Pai. (Mt 26.26-29)

3. Qual é o resultado para aqueles que acreditam nisso?

Vimos como o ritual da semichá foi usado para transferir pecados para um animal substituto. Ao colocar a mão sobre a cabeça do animal enquanto confessava seus pecados, os hebreus prenunciavam a confissão de culpa e faziam o gesto que futuramente a humanidade faria ao colocar suas mãos sobre a cabeça do Cordeiro de Deus, coroando-o com espinhos: “Saiu, pois, Jesus, levando a coroa de espinhos e a veste de púrpura. E disse-lhes Pilatos: ‘Eis aqui o homem’” (Jo 19.5).

Agora não resta qualquer ritual, liturgia ou sacrifício nos diversos sistemas religiosos existentes, “porque há um só Deus e um só mediador entre Deus e os homens, Jesus Cristo, homem” (1Tm 2.5; ênfase minha). Jesus se torna o fim da religião, considerando religião como aquilo que o homem faz para aproximar-se de Deus, e ele mesmo declara isso na cruz com a conhecida frase “Está consumado”.

Na Criação, o caos foi dissipado quando Deus disse “haja luz”. Agora, o caos da vida humana de pecado se dissipa quando declaramos que queremos a luz de Deus em nós: “Se você confessar com a sua boca que Jesus é o Senhor e crer em seu coração que Deus o ressuscitou dentre os mortos, será salvo” (Rm 10.9). Não será preciso acrescentar nada mais a isso. A palavra se torna a maneira de se relacionar com Deus. Nas antigas religiões, era proibido aos profanos dirigir a palavra aos seres sagrados ou simplesmente de falar na sua presença. A fé cristã que Jesus elaborou, criou e inaugurou no Calvário promove a fala como veículo para a nossa comunicação com Deus: “Pai nosso, que estás no céu”.

Consideração final

Acima de tudo, há que considerar o papel do Espírito Santo em nossa relação íntima e intermitente com Deus. Se nas religiões do passado era preciso reservar tempo específico e local apropriado, mediante aquilo que Jesus realizou, tanto o culto como a adoração a Deus não têm mais fim nem limitações de tempo e espaço.

A habitação do Espírito Santo em nós é o penhor, a garantia de que essa celebração não terminará: “E eu pedirei ao Pai, e ele lhes dará outro Conselheiro para estar com vocês para sempre, o Espírito da verdade. O mundo não pode recebê-lo, porque não o vê nem o conhece. Mas vocês o conhecem, pois ele vive com vocês e estará em vocês” (João 14.16-17).

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