Categoria - Eclesiologia

UM ASPECTO DA MISSÃO URBANA

Magno Paganelli

O objetivo deste ensaio é uma discussão introdutória sobre o ensino e análise das três naturezas da Igreja e como elas estão relacionadas à autonomia, cultura e maturidade. As considerações aqui relacionadas poderão ser levadas para uma discussão em reuniões e aulas nas igrejas locais, com o propósito de apresentar e tema, discutir suas implicações e fazer uma avaliação da situação da igreja quando pensamos em expansão ou missão urbana.

Evidentemente nós reconhecemos os variados modelos de expansão que circulam entre as igrejas e diferentes ministérios e sabemos que muitas igrejas estão alcançando resultados numéricos atraentes. Não é uma pretensão que nossas reflexões sejam consideradas superiores ou melhor elaboradas; ao contrário, consideramo-las um convite a igrejas mais afastadas dos grandes centros urbanos, com menos recursos de propaganda e mídia, a fim de que não sejam desanimadas do envolvimento com a sua missão específica e local de levar o Evangelho aos vizinhos e trazer a sociedade local para uma caminhada na presença do Senhor.

A autopropagação

Consideremos os textos de Atos 1.8 e 13.1-3.

Mas receberão poder quando o Espírito Santo descer sobre vocês, e serão minhas testemunhas em Jerusalém, em toda a Judeia e Samaria, e até os confins da terra. […]

Na igreja de Antioquia havia profetas e mestres: Barnabé, Simeão, chamado Níger, Lúcio de Cirene, Manaém, que fora criado com Herodes, o tetrarca, e Saulo. Enquanto adoravam ao Senhor e jejuavam, disse o Espírito Santo: “Separem-me Barnabé e Saulo para a obra a que os tenho chamado”. Assim, depois de jejuar e orar, impuseram-lhes as mãos e os enviaram.

A expansão da igreja é atividade prevista e desejada pelo Senhor. Embora alguns defensores da expansão numérica claramente a desejem por motivos menos nobres, ao menos a considerar suas práticas nada ortodoxas em relação ao tipo de mensagem que pregam e ao modo como passam por cima de ensinos claros do Evangelho como a simplicidade, o socorro dos necessitados, a santidade, entre outros, ainda assim podemos notar que Jesus pretendeu a expansão de seu Reino. Por trás de um crescimento assim, estão as almas que poderiam se perder, mas terão a oportunidade de serem salvas, de livrar-se da condenação eterna, como acreditamos que irá ocorrer a quem não adotar a salvação oferecida por Cristo a todo aquele que nele crer (Jo 3.16).

De que forma ela pode ocorrer na atual sociedade? Essa pergunta exige uma resposta ampla, quando levamos em conta as inúmeras diferenças que podem ser encontradas no Brasil, desde as geografias social, econômica e política, passando pela cultura, pela localização industrial ou vocação de um estado ou região, e outros pontos que têm sido levados em conta pelos especialistas em expansão da igreja. Não temos espaço para tanto e, como dito na introdução, estamos considerando reflexões mais modestas que visem provocar os leitores e seus pares a discussões e a ações.

A autopropagação é a capacidade de uma igreja de gerar o crescimento do corpo para fora de seus muros. Faz parte da identidade mais forte da Igreja crescer “para fora”. Para fora de onde? Jesus chamou seus primeiros discípulos para fora do sistema religioso fossilizado do judaísmo, que havia sido viciado pelos mestres da Lei, fariseus e sacerdotes da antiga aliança. Mas manteve-nos no mundo para sermos sal e luz (Mt 5.13), mesmo dizendo que não éramos do mundo (Jo 15.19; 17.16).

Há alguns bons exemplos de autopropagação na igreja primitiva descrita em Atos. Em Jerusalém, nos primeiros meses após a ressurreição do Senhor, é possível notar que os cristãos judeus foram prósperos na evangelização. Apenas duas ocorrências nas quais Pedro pregou (At 2.41; 4.4) no templo somam oito mil conversões (embora nem todos fossem moradores da cidade). Há historiadores que estimam 20 mil almas já no primeiro ano da igreja. Apenas para efeitos comparativos, J. Jeremias, teólogo alemão, calculou a população local da cidade de Jerusalém nos tempos de Jesus perto de 30 mil habitantes.

Há fartos exemplos de autopropagação da Igreja na história. A Igreja cresceu nos três primeiros séculos por força de seu testemunho, especialmente pela demonstração das virtudes cristãs que ela cultivava e promovia.[1] Depois, na Idade Média, quando a Igreja amadureceu na Europa em seu casamento com as monarquias, houve uma paralisia, que seria curada após a Reforma Protestante, cujo auge ocorreu no século XVI.[2] Depois disso, com o início das missões modernas, depois os despertamentos ocorridos nos Estados Unidos e, mais recentemente, a explosão pentecostal em vários continentes, a Igreja tem experimentado a autopropagação de maneira indiscutível (embora estejamos conscientes dos problemas que toda expansão numérica traz).

Os cultos nos lares e o crescimento da igreja

Quem não conhece alguém que tenha se convertido a Cristo num culto realizado no lar? Eu mesmo sou fruto de trabalhos em casas, os chamados “cultos nos lares”. O culto no lar difere do culto doméstico apenas no fato de que o doméstico é realizado pela própria família, ao passo que o culto no lar é um trabalho oficial da igreja, normalmente dirigido por um obreiro.

Tive o privilégio de fazer uma pergunta sobre cultos nos lares a muitos pastores experientes, que iniciaram trabalhos em cidades pequenas, distantes dos grandes centros, e alguns em grandes cidades. Hoje eles estão à frente de igrejas fortes e numerosas, mas nem sempre foi assim. E a pergunta, qual era?

― Como iniciar e fortalecer um trabalho onde não havia uma igreja antes?

A resposta foi unânime: visitas e cultos nos lares. Os modernos meios e métodos de crescimento de igrejas não contemplam mais esta alternativa. Nas duas últimas décadas, boa parte dos recursos tem sido destinada a mídia, o espaço na televisão, a exposição do líder carismático, o investimento em comunicação visual à exemplo da comunicação corporativa e até mesmo as ferramentas da internet, que convergem para o que se chama “igreja eletrônica”. Há, a bem da verdade, métodos mais acessíveis e de bons resultados, mas todos focados nos trabalhos feitos na igreja local.

Talvez esses métodos sejam o meio ao alcance (não que sejam os mais adequados) das mega-igrejas, mas é preciso pensar em um mecanismo que possa atender a igrejas de menor porte, e é aí que entram os cultos nos lares. Vejamos algumas vantagens e benefícios desses trabalhos:

― Eles aproximam o pastor da ovelha;

― Abrem a porta para pessoas que não iriam à uma igreja por diversos motivos;

― São facilitadores do acesso a vizinhos, parentes, amigos e pessoas com deficiências físicas ou com problemas de saúde;

― Promovem maior liberdade, por deixar as pessoas nos seus ambientes seguros: o lar;

― Ajudam no desenvolvimento de talentos, pois as pessoas têm a oportunidade de participar mais ativamente;

― Promovem o exercício de dons espirituais;

― Promovem maior comunhão;

― Removem a falsa aparência das pessoas, mostrando quem são e como vivem;

― Ajudam a treinar novos obreiros, que podem ter oportunidades para pregar suas primeiras mensagens;

― Ajudam no desenvolvimento de cantores(as) e músicos;

― Por serem realizados com número reduzido de pessoas, é possível orar pelos presentes de maneira mais pessoal;

― Facilitam a maior comunhão entre os irmãos, sentados à roda de uma mesa, por exemplo;

― É um ambiente terapêutico propício para a confissão de pecados e tratamentos dos mesmos, o que irá promover maior santidade;

― Atraem os adolescentes e jovens da comunidade;

― Promovem a criação de uma rede de relacionamentos, o network;

― Levam a um estudo mais eficaz da Palavra de Deus, onde as dúvidas podem ser tiradas no momento da palavra etc.

Outros benefícios poderiam ser listados. Fato é que as pessoas que participam dos cultos nos lares certamente irão frequentar a igreja nas suas reuniões oficiais, e serão cristãos mais fortes e mais maduros. Novos membros serão pescados nos lares para depois serem admitidos na igreja local.

Além disso, os cultos nos lares são excelentes meios para tirar a igreja de dentro dos muros e leva-la para a comunidade local, para que apresente o Evangelho a essa comunidade e exponha suas propostas e cumpra parte da sua missão, ou ao menos facilite o cumprimento dessa missão. E como disse Bryan Jay Bost em seu livro De Casa em Casa, “a igreja precisa ir aonde as pessoas estão e as pessoas estão nas suas casas”.

Definição das três naturezas.

A definição das três naturezas passa pela noção de que a Igreja é constituída a partir do esforço missionário estrangeiro sobre a igreja nativa e deve ser autogovernada, deve se autos sustentar e deve auto propagar-se. Esse tripé não lida apenas com suposições, mas encontra apoio bíblico claro.

O autogoverno deve emergir da compreensão da igreja como corpo de Cristo, que é a cabeça, e parte do princípio que a Igreja foi dotada pelo Senhor com dons e ministérios que a habilitam para sua própria gerência (Rm 12; 1Co 12; Ef 4.1-16).

A auto-sustentabilidade é o aspecto da Igreja que se conecta ao ensino sobre a mordomia, a Igreja como despenseira das provisões que são feitas pelo Senhor em função do seu plano para ela, e resulta da resposta do Senhor às expectativas de fé do seu povo. Como apoio bíblico pode-se observar Mt 6.25-34; 2Co 8.9 e Fp 4.10-19.

A auto-propagação é o aspecto, segundo Rufus Anderson, de grande importância. A igreja deve auto propagar-se, pois essa é a razão principal da existência da igreja. Em minha opinião, a auto propagação cumpre o propósito divino para ela e também reverte benefícios para o aspecto anterior, a auto-sustentabilidade, no que tange aspectos e recursos materiais necessários a parte de sua manutenção.

Evolução do termo

O conceito das três naturezas surgiu no Período Colonial, quando a expansão missionária tomou novo impulso na Europa e, posteriormente, nos Estados Unidos. Dadas as circunstâncias econômicas nos países sede das missões, bem como uma posterior identificação da falta de evangelismo por parte das igrejas nativas, Henry Venn e Rufus Anderson deram início a discussão sobre o auto-governo, o auto-sustento e a auto propagação das igrejas nativas.

Autonomia relacionada às três naturezas

Por definição, autonomia engloba os elementos das três naturezas. Do grego auto = próprio, nomos = norma, regra, autonomia pode ser definida como norma própria, a igreja define sua maneira de operar, dentro do seu contexto cultural, político e econômico.

Dessa forma, respeitando os princípios bíblicos inegociáveis, o termo autonomia ligado às três naturezas seria aplicado da seguinte maneira.

A igreja define sua forma de governo, que pode ser diferente do modelo da igreja-mãe (veja o exemplo da fundação das Assembleias de Deus no Brasil – AD). Os missionários suecos que fundaram as AD haviam sido enviados por uma igreja norte-americana de orientação batista. O sistema de governo nas igrejas batistas é o congregacional, que pressupõe autonomia local e democracia ou voz ativa dos membros. Mas a mesma dupla de missionários enviados, ao desembarcar no Brasil, fundou uma igreja cuja forma de governo é episcopal, que pressupõe a centralidade do poder na pessoa do bispo (entenda bispo como aquele que pastoreia pastores).
A autonomia ligada ao auto-sustento refere-se tanto ao sistema de governo adotado quanto a própria teologia bíblica. Há igrejas que não recolhem ofertas; os membros as depositam no gazofilácio. Infelizmente há casos que se assemelham a extorsão dos membros, dada a maneira agressiva como insistem nas “doações”. Práticas assim resultam da maneira como se veem na função de mordomos e, especialmente, como entendem a ação direta de Deus no sustento do seu povo, da sua igreja e na sua expansão (evangelismo, missões, discipulado, visitas etc.).
Por último, autonomia ligada à auto propagação é vista nos meios aplicados ao crescimento numérico e qualitativo. A partir da leitura da comunidade em seu entorno, a igreja define os meios para alcançar os perdidos com o evangelho. No Brasil é possível ver os mais diversos meios de evangelismo e propagação. Desde folhetos e cultos ao ar livre até websites, email-marketing, programas de TV ou TV via internet (a igreja eletrônica). A definição dos meios se dá de acordo com o público que se pretende atingir e é uma decisão autônoma da igreja.
A dimensão cultural relacionada às três naturezas.

Foram os missionários alemães que trataram a questão da dimensão cultural no âmbito da igreja nativa. Lendo o livro de Atos é possível notar a preocupação que os apóstolos tiveram com a dimensão cultural. Paulo tratou a questão e uma das curiosas passagens é quando confrontou Pedro sobre sua postura com os judeus e a mudança de postura quando se reuniu com gentios (Gl 2.11-21). A controvérsia que pode ser vista no primeiro concílio (Atos 15) é outro exemplo vívido da preocupação cultural.

Se entendemos o conceito das três naturezas, fica fácil perceber que a cultura na igreja nativa tem tudo a ver com as três naturezas, uma vez que entendemos cultura como o conjunto de hábitos, padrões de relacionamento e tradições em determinado grupo étnico. Esse conjunto (hábitos, relacionamentos e tradições) rege o comportamento daquela sociedade no que tange as três naturezas.

Podemos destacar como exemplo de nossa própria igreja, a questão musical. Por muito tempo era comum nas ADs o uso exclusivo de hinário de origem estrangeira que foram traduzidos. No final da década de 1970, com a igreja já desenvolvida, vimos o surgimento dos chamados “corinhos” e hinos avulsos, que nada mais era do que a expressão nativa da cultura popular. Hoje em dia sabemos de expressão de louvor por meio de samba, rock e até mesmo o rap, que são elementos característicos de uma cultura amadurecida.

A dimensão maturidade relacionada às três naturezas

A questão da maturidade relaciona-se às três naturezas de maneira natural e necessária. Minha opinião é que nenhum aspecto das três naturezas pode ser levado adiante sem que antes a maturidade esteja na pauta do crescimento da igreja. Por contraste, podemos afirmar que uma igreja imatura não se preocupa com sua a auto governança, nem com a própria sustentabilidade e menos ainda com o próximo, com a propagação por meio do evangelismo e das missões. Como, então, falar nas três naturezas sem que antes a igreja tenha claras e bem definidas as características de uma igreja amadurecida e consciente de sua missão?

Ao enfatizar a maturidade, Henry Venn sustenta que ela se dê sobre a base da instrução bíblica, o que é sempre bem-vindo. E deve ser assim, uma vez que nas Escrituras encontramos todos os aspectos necessários ao amadurecimento sadio.

Um exemplo tirado de nossas igrejas é a implantação da Escola Bíblica Dominical ou, num segundo momento da expansão, um curso de teologia. Diversas igrejas mantêm ambos os projetos em funcionamento devido ao tempo de existência e a presença de elementos humanos em condições de sustentar projetos desse nível. Mas tratando de uma igreja nova, a EBD é um departamento necessário para promover o amadurecimento, ampliar e solidificar os conhecimentos bíblicos, tratar de questões diárias com maior aproximação e criar um ambiente de confraternização. Costumo dizer que a EBD é o culto para a igreja, já que em outras reuniões são promovidos encontros de evangelização ou outras atividades.

Considerações finais

A Igreja pode olhar para diversas frentes de atuação nas quais a sua presença será bem-vinda. Dentre as muitas atividades e ações que a Igreja pode se envolver, a sua missão precípua é buscar o que está perdido, levando o Evangelho da salvação. Em todos os casos, os membros não foram reunidos numa congregação (eklésia) simplesmente para celebrações cuja finalidade seja eles mesmos em torno de um evento. As igrejas não foram chamadas “para dentro”, mas “para fora”.

Há nessa última afirmação uma implicação individual e uma coletiva. A implicação individual tem a ver com os dons e o testemunho dado por cada cristão; a implicação coletiva é que a reunião dos cristãos numa congregação para celebrar a salvação diante de Deus em suas reuniões é válida, mas essa não é a finalidade de nenhuma Igreja. A nossa finalidade é manter-nos no caminho, trilhando uma jornada de fé até sermos vistos pela sociedade onde estamos inseridos e levar luz ou sal (ou ambos) a essa mesma sociedade.

[1] Há um interessante livro lançado recentemente no Brasil em que o autor, professor Alan Kreider, pesquisou as fontes primárias do cristianismo dos três primeiros séculos e demonstra que a paciência era uma virtude que atraia fortemente a atenção dos cidadãos do Império Romano, pois que eram impacientes e nervosos. Somos acostumados a ouvir sobre as perseguições do Império contra os cristãos como sendo o motivo do crescimento inicial da igreja, mas a pesquisa do prof. Kreider desmonta essa tese. A. Kreider, O paciente fermento da igreja primitiva. Maceió: Sal Cultural, 2017.

[2] É preciso considerar que houve grupos pré-reformistas anteriores a Reforma na Alemanha desde o século IX, além de indivíduos pré-reformadores, como John Huss, Savonarola entre outros.

Outros Artigos sobre - Eclesiologia

UM ASPECTO DA MISSÃO URBANA

Categoria – Eclesiologia UM ASPECTO DA MISSÃO URBANA Magno Paganelli O objetivo deste ensaio é uma discussão introdutória sobre o ensino e análise das três naturezas da Igreja e como

Leia mais »