Categoria - Evangelhos

A LINGUAGEM DO SAGRADO EM JOÃO 14:1-6

Magno Paganelli

No estudo das diversas tradições religiosas, qualquer que seja a sua matriz (animista, xamânica, indígena, totêmica, politeísta etc.), sabemos que a linguagem utilizada nesses sistemas, sua liturgia, seus rituais e demais aparatos que possam ser usados em um ambiente assim, de procura pela manifestação do sagrado, são interditadas ao homem comum. Desde as religiões arcaicas até circuitos mais modernos, seja uma religião mais elaborada ou não, sempre há a presença de interdições. Espaços, objetos e palavras devem ser interditados a pessoas “não iniciadas”.

Emile Durkheim, sociólogo da religião na virada para o século XX, desenvolveu amplamente essas interdições chamadas “tabu”. O tabu é aquilo que não pode ser tocado, por vezes não pode sequer ser visto por aquele que não pertence aos quadros sacerdotais ou oficiais de uma religião. Dou exemplos. Quando Moisés cuidava do gado de seu sogro Jetro e viu um arbusto em chamas sem ser consumido por elas (Êx 3.2), aproximou-se para ver de perto e ouviu de Deus para descalçar seus pés, porque o lugar era santo, isto é, interditado ao homem natural (Êx 3.5). Temos aqui um caso de lugar interditado.

Quando os hebreus fabricaram uma arca no deserto para ser colocada na tenda do encontro, esse objeto foi interditado aos não iniciados, pois era proibido tocá-la (Lv 16.2). Na ocasião em que a arca precisou ser transportada num carro de bois, Uzá tentou evitar que ela caísse do carro e foi fulminado, porque não era permitido a ele tocá-la, ne com boa vontade (1Cr 13.10). No Islã, a Caaba, santuário central daquela religião, esconde a pedra negra. Milhões de peregrinos que visitam o santuário em Meca não veem o que está oculto na Caaba.

Há palavras cuja pronúncia são vetadas na religião. Os judeus não pronunciam o nome de Deus; quando querem referir-se a Ele, usam “Eterno” ou outros eufemismos. No passado, as missas católicas no Brasil eram celebradas em latim, idioma que só os padres compreendiam. Nas religiões de matriz afro, onde não há um código legislativo como os Dez Mandamentos, por exemplo, as interdições são estabelecidas entre o orixá e seu seguidor. Para cada fiel, o orixá faz uma exigência pessoal, como não se tatuar, além das exigências comuns, como não usar determinada cor de roupa, não comer determinado alimento.

Há muito mais sobre isso, mas nesse ponto precisamos dizer que entre as transformações radicais feitas por Jesus, está o fato de que ele tornou tudo acessível, inaugurando um novo caminho, um acesso ao Pai. Ele disse: “Ninguém vem ao Pai senão por mim” (Jo 14.6). O acesso vedado, interditado, o “tabu” foi removido por seu sacrifício na cruz. O véu do Templo foi rasgado na sua morte: a interdição foi removida. Mas ele fez mais: deu sentido e significado para todos os elementos, objetos, símbolos, rituais, narrativas e linguagem da religião em geral. Em Jesus, todo sistema religioso encontra a sua realização e, com isso, a sua finalidade. Se entendermos a religião como um sistema para chegarmos a Deus, em Jesus encontramos o fim da religião, porque ele nos coloca diante do Pai definitivamente.

Vejamos o texto que merece a nossa atenção:

“Não se perturbe o coração de vocês. Creiam em Deus; creiam também em mim. Na casa de meu Pai há muitos aposentos; se não fosse assim, eu lhes teria dito. Vou preparar-lhes lugar. E se eu for e lhes preparar lugar, voltarei e os levarei para mim, para que vocês estejam onde eu estiver. Vocês conhecem o caminho para onde vou”. Disse-lhe Tomé: “Senhor, não sabemos para onde vais; como então podemos saber o caminho?” Respondeu Jesus: “Eu sou o caminho, a verdade e a vida. Ninguém vem ao Pai, a não ser por mim.” (Jo 14.1-6; ênfase minha).

1. Os elementos vegetais na religião

Desde os primórdios da curiosidade humana a respeito dos poderes espirituais e sobrenaturais, o homem imaginou haver uma divindade que habitava elementos da natureza, como a pedra, a árvore, o rio, a montanha. O céu foi considerado a habitação de uma divindade poderosa. Ao observar a natureza, o homem fazia interpretações e organizava suas ideias religiosas, como expressa no Salmo: “A vida do homem é semelhante à relva; ele floresce como a flor do campo, que se vai quando sopra o vento e nem se sabe mais o lugar que ocupava.” (Sl 103.15,16). As religiões arcaicas de fertilidade, quando a agricultura era a principal atividade da tribo ou do clã, ensinaram sobre a vida rítmica e sobre a esperança.

Quando estive no Egito, perguntei ao nosso guia o que era possível aprender naquele país. Ele respondeu que tudo o que havia no Egito havia sido dado e ensinado pelo rio Nilo. Na observação do Nilo, os egípcios aprenderam sobre a vida e a religião dos faraós. Como o rio enche na cheia e morre na seca, as plantas nascem e morrem, a lua nasce e morre, o sol nasce e morre. Então, os egípcios elaboraram a ideia de que a vida humana é semelhante. Depois de morrermos aqui, nasceremos em outro mundo, assim como a natureza. Então os faraós fizeram as pirâmides e foram enterrados com suas riquezas, com alimento e objetos de uso pessoal e suas histórias foram escritas nas paredes para que pudessem mostrar suas realizações quando chegassem no outro mundo. No judaísmo antigo, os hebreus olharam para o céu e também fizeram suas interpretações: “Os céus proclamam a glória de Deus, e o firmamento anuncia as obras das suas mãos.” (Sl 19.1).

Assim, pela observação da natureza brotaram conceitos como:

– Renovação: a partir do comportamento das sementes, que fertiliza o solo e muda a sua forma, dá vida e frutifica;– Os níveis do mundo: a partir da observação da árvore, vários povos fizeram uma representação do mundo em três partes: mundo celeste (copa das árvores); mundo terrestre (tronco) e mundo subterrâneo ou hades (raízes).– Magia para o vigor físico: ideias a partir das ervas/vegetação, como se imaginavam que as mandrágoras eram afrodisíacas, quando Rubem trouxe para sua mãe Lia e Raquel propôs troca por uma noite com Jacó. O nome mandrágora em hebraico tem a raiz da palavra “amor” devido a essa noção.

Assim como a semente fica oculta na terra até gerar nova vida nos brotos, vários povos antigos mantinham a esperança de que o corpo da pessoa morta poderia ter um regresso. Psicólogos explicam que essas conclusões eram sínteses mentais, que são analogias de haver uma unidade da vida orgânica que dá origem a principal raiz do otimismo soteriológico. Como a semente enterrada tornará a dar vida, assim também com o corpo enterrado tornará a viver. Se pudermos tomar emprestado do texto mais antigo da Escritura, temos em Jó um exemplo disso: “Eu sei que o meu Redentor vive, e que no fim se levantará sobre a terra. E depois que o meu corpo estiver destruído e sem carne, verei a Deus.” (Jó 19.25,26).

Também nesse caso, Jesus atualiza e realiza plenamente essas ideias e linguagens religiosas mais antigas. Sabendo que seus ouvintes imediatos viviam em um contexto dessa natureza, veja como ele lidou com as ideias em torno da semente: “Digo-lhes verdadeiramente que, se o grão de trigo não cair na terra e não morrer, continuará ele só. Mas se morrer, dará muito fruto.” (Jo 12.24; ênfase minha). E sobre o Reino, ele diz: “É como um grão de mostarda, que, quando plantada, é a menor semente de todas.” (Mc 4.31; ênfase minha).

Jesus também usou as ideias religiosas que usaram a árvore: “Eu sou a videira; vocês são os ramos. Se alguém permanecer em mim e eu nele, esse dá muito fruto; pois sem mim vocês não podem fazer coisa alguma.” (Jo 15.5). Sobre a participação na mesma natureza (assim como a semente morre e renasce), Jesus deu novos significados às ideias de seus ouvintes: “O ladrão vem apenas para furtar, matar e destruir; eu vim para que tenham vida, e a tenham plenamente.” (João 10.10; ênfase minha).

As ideias em torno das ervas, como o Salmo 103.15-16 mencionado, Jesus também aproveitou e deu novo significado:

“Visto que vocês não podem sequer fazer uma coisa tão pequena, por que se preocupar com o restante?Observem como crescem os lírios. Eles não trabalham nem tecem. Contudo, eu lhes digo que nem Salomão, em todo o seu esplendor, vestiu-se como um deles. Se Deus veste assim a erva do campo, que hoje existe e amanhã é lançada ao fogo, quanto mais vestirá vocês, homens de pequena fé! Não busquem ansiosamente o que hão de comer ou beber; não se preocupem com isso. Pois o mundo pagão é que corre atrás dessas coisas; mas o Pai sabe que vocês precisam delas. Busquem, pois, o Reino de Deus, e essas coisas lhes serão acrescentadas. Não tenham medo, pequeno rebanho, pois foi do agrado do Pai dar-lhes o Reino.” (Lc 12.26-32; ênfases minhas).

2. A linguagem da religião de Israel

Durante a travessia dos hebreus pelo deserto, depois de saírem do Egito, Deus enviou o maná para alimentá-los durante cerca de 40 anos. Com a manifestação pública de Jesus, um novo alimento estaria à disposição daqueles que cressem em suas palavras. Ele disse: “Eu sou o pão vivo que desceu do céu. Se alguém comer deste pão, viverá para sempre. Este pão é a minha carne, que eu darei pela vida do mundo.” (Jo 6.51).

Foi no deserto que os hebreus construíram um santuário para o Senhor (Êx 25), colocaram dentro dele a arca cuja tampa era chamada de propiciatório.

“Diga aos israelitas que me tragam uma oferta. Receba-a de todo aquele cujo coração o compelir a dar. E farão um santuário para mim, e eu habitarei no meio deles. Faça uma arca de madeira de acácia com um metro e dez centímetros de comprimento, setenta centímetros de largura e setenta centímetros de altura. Faça uma tampa de ouro puro com um metro e dez centímetros de comprimento por setenta centímetros de largura, com dois querubins de ouro batido nas extremidades da tampa.” (Êx 25.2,8,10,17,18).

Novamente Jesus elimina do ambiente do sagrado a necessidade de elementos físicos para nos aproximarmos dele, pois ele é a nossa propiciação: “Ele é a propiciação pelos nossos pecados, e não somente pelos nossos, mas também pelos pecados de todo o mundo.” (1Jo 2.2)

Na primeira aparição pública de Jesus, a experiência de Abraão com o cordeiro enroscado já havia sido plenamente realizada. A passagem de Gênesis 22.13,14 diz: “Abraão ergueu os olhos e viu um carneiro preso pelos chifres num arbusto. Foi lá, pegou-o e sacrificou-o como holocausto em lugar de seu filho. Abraão deu àquele lugar o nome de ‘O Senhor proverá’”. Por isso até hoje se diz: ‘No monte do Senhor se proverá’. A realização completa dessa ocorrência se deu no local do batismo de Jesus: “No dia seguinte João estava ali novamente com dois dos seus discípulos. Quando viu Jesus passando, disse: ‘Vejam! É o Cordeiro de Deus!’” (Jo 1.35,36)

3. Os “centros do mundo”

Finalmente, entre os elementos que constaram no cenário religioso em vários sistemas arcaicos estão aqueles chamados de “centros do mundo”. Há diversas religiões que, por não conheceram a grandeza daquilo que Jesus fez, ainda preservam seus “centros do mundo”. Veja, por exemplo, a cruel disputa pela ocupação de Jerusalém. Mais do que as simples batalhas de ordem social e política, há por trás narrativas de natureza religiosa que procuram legitimar direitos de judeus e muçulmanos a ocupação daquela cidade. Apenas o cristianismo não disputa a ocupação de Jerusalém, porque o NT ensina que cristãos não têm herança nessa terra (Lc 9.58) e somos como forasteiros e peregrinos (Ef 2.19; 1Pe 2.11).

Entre os principais elementos da religião que apontam para um “centro do mundo” estão:

Árvores: no Éden, Deus plantou a árvore da vida e a do conhecimento no centro do jardim. Gênesis (35.4), Josué (24.26), Juízes (9.6,37) e Oseias (4.13) falam do carvalho do Senhor, carvalho memorial e carvalho dos adivinhadores.

Pedras: marcam o centro espiritual/religioso e o acesso à outra dimensão. A passagem com Jacó mostra isso: “Teve medo e disse: ‘Temível é este lugar! Não é outro, senão a casa de Deus; esta é a porta dos céus’. Na manhã seguinte, Jacó pegou a pedra que tinha usado como travesseiro, colocou-a de pé como coluna e derramou óleo sobre o seu topo.” (Gn 28.17,18; ênfases minhas).

Montes: Horebe, Sinai, Olimpo (Grécia), Everest (Nepal-China), Machu Picchu (Peru), Fuji (Japão), Arunachala (Índia). O Tabor, na Palestina, poderia ser o “umbigo da terra” (tabbur = umbigo). Ainda hoje em muitas igrejas cristãos pensam que a oração feita no monte tem mais “poder”.

Templos: todos os templos são considerados centro do mundo. No Brasil (mas não apenas aqui), as catedrais católicas estão nos centros metropolitanos e em qualquer cidade do interior há uma igreja na praça central. A sociedade se desenvolve a partir do centro espiritual daquela população.

Na rivalidade entre judeus e samaritanos vemos a disputa pelo principal “centro do mundo”: Gerizin (em Samaria) e Sião (em Judá). A mulher samaritana perguntou: “Senhor, vejo que é profeta. Nossos antepassados adoraram neste monte, mas vocês, judeus, dizem que Jerusalém é o lugar onde se deve adorar.” (Jo 4.19,20).

Com Jesus, fica invalidada a ideia geográfica de um centro do mundo, pois ele é esse centro: “EU SOU”. Jesus fez pelo menos sete afirmações do tipo “Eu sou”: o caminho a verdade e a vida, o pão, a luz do mundo, a porta (das ovelhas), o Bom Pastor, a ressurreição e a vida, a videira verdadeira. E invalida as demais ideias também. Ele é o centro e ninguém vai ao Pai senão por meio dEle.

Considerações finais

Ao fazer a afirmação “Eu sou o caminho, a verdade e a vida”, Jesus definiu em si todo o universo religioso e filosófico do passado, do presente e do futuro, pois era isso o que se procura em qualquer tradição religiosa. Os orientais procuram o “caminho” de equilíbrio entre os mundos físico e espiritual; os filósofos gregos do seu tempo discutiam o que era “a verdade” e os semitas, por meio dos sacrifícios de sangue, buscavam a vida como favor dos seus deuses. Jesus trouxe aquilo que todos buscavam, tateando sem poder ver nitidamente (At 17.27). Até mesmo a pobre busca de um “Jesus enriquecedor” como vemos no neopentecostalismo (a Mamonlatria), perde o significado quando lemos o que Paulo escreveu: “Mas temos esse tesouro em vasos de barro.” (2Co 4.7). Jesus é o único Deus que põe um fim a toda e qualquer procura espiritual e religiosa que possamos empreender.

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