Categoria - História Eclesiástica

CATÓLICOS X LUTERANOS NA JUSTIFICAÇÃO: PERIGO OU ESPERANÇA?

Eberhard Hahn

Introdução

O assunto com o qual estamos nos ocupando é apresentado no título desse artigo com uma pergunta.

Perguntas exigem respostas. Portanto, essa pergunta será respondida no final dessas linhas. Todavia o assunto também inclui uma afirmação que traz uma surpresa. Esta surpresa encontramos no termo “aproximação”.1Não há dúvida de que os documentos publicados em anos recentes por várias comissões ecumênicas são testemunhas de uma considerável “aproximação” entre a igrejas Católica Romana e as igrejas provenientes da Reforma. Por outro lado, olhando para os documentos do século XVI, o termo “aproximação”, tendo em vista o ensino da justificação nos dois lados seria mais do que desapropriado. O que encontramos ali é o extremo oposto de “aproximação”. O termo “anathema”l”damnamus” é usado com freqüência, indicado pela exclusão do oponente, considerando-o um herege, afirmando sua separação da igreja e da comunhão dos crentes, o que o entregava ao julgamento eterno de Deus.Ao falarmos em “aproximação” hoje, temos de levar em conside­ração a enorme lacuna que vem desde o período da Reforma até os dias de hoje. A pergunta “perigo ou esperança?” indica que uma ponte sobre esta lacuna em nossa época pode não ser tão confiável como deveria ser, devido ao peso da doutrina da justificação para o Cristianismo.Estas observações introdutórias abrem caminho para a nossa abor­dagem sobre este assunto. Nas duas primeiras subdivisões desse artigo nos ocuparemos com a compreensão de Lutero sobre a justificação e a reação do Concílio de Trento com respeito à Reforma. Na terceira subdivisão apresentaremos um resumo do documento da Comissão Ecumênica sobre a justificação, feito da Alemanha, que teve sua primeira publicação em 1986.
Em seguida serão apresentadas algumas reações a este documento e, finalmente, a pergunta inicial será respondida.O que disse Lutero sobre a Justificação?”O artigo sobre a justificação é o superior e principal, senhor, líder e juiz de todas as formas de doutrina. Ele preserva e governa todas as doutrinas da Igreja e eleva nossa consciência diante de Deus. Sem este artigo o mundo está totalmente morto e escuro.”2 É somente este artigo que faz de nós teólogos. É por este artigo que a Igreja permanece ou cai (articulus stantis et cadentis ecclesiae ). Concentrando-se na justificação, a Igreja indica seu centro e também seus limites. É aqui e aqui apenas que a questão da teologia é definida: “A questão da teologia é o homem pecador, acusado e perdido, e o Deus que justifica e salva este homem de pecado. Qualquer coisa que seja disputada e discutida em teologia fora desta questão é erro e veneno .”3Isto significa que a justificação não é uma doutrina entre outras, mas nela encontramos o ponto de onde nossa vida pode ser propriamente examinada diante do Deus santo. É pela forma como definimos este ponto que depende tudo o mais na fé cristã e na teologia. Por meio da justificação chegamos a entender quem Deus é, o que Cristo fez por nós, o que significa a obra do Espírito Santo, quem é o homem, o que significa o peso do pecado, etc.

2 Escrito apresentado na consulta teológica de EURIM (European Inner Missions within the Lutheran Church), 27-30. l 0.1996, em Svendborg, Dina­marca.1 A relevância do artigo é ainda maior depois do documento assinado no fim de outubro de 1999 entre a igreja católica romana e a igreja luterana, no qual define-se a nível de concordância entre as duas com respeito à doutrina da justi­ficação.3 WA 39 1,205,2 (tradução do autor).

A justificação é estritamente orientada para a escatologia: todos estarão diante de Deus, o criador e juiz. Neste sentido, a confissão diária de pecados serve para preparar para este comparecimento final diante de Deus.A pregação da lei revela nossa situação diante de Deus: basicamente, quebramos o primeiro mandamento pois não temos colocado toda nossa confiança em Deus, nosso Pai. Desta transgressão básica proce­dem todas as outras transgressões dos mandamentos de Deus. A lei também revela o julgamento de Deus sobre o pecador. Diante desta revela­ção só podemos fugir para a cruz de Cristo – o caminho aberto pelo evangelho.A compreensão da justificação pôs Lutero numa situação em que ele teve de se defrontar com duas frentes distintas. A. Peters as chama de “a linha dos monges e a linha dos camponeses”4 Diante da primeira, Lutero enfatiza a graça como o dom gratuito de Deus: justificação não significa: Deus é justo e quer que eu me torne justo como ele é por meio de meu próprio esforço, mas: Deus é justo e por meio de Cristo ele con­fere esta justiça divina a mim, sem qualquer contribuição de minha parte – exceto por meu pecado que é minha própria contribuição. Este é o comércio admirável, a “troca milagrosa”, como é explicado em “Da Li­berdade Cristã” (1520)5 : “O rico, nobre, piedoso noivo Cristo casa-se com a prostitutazinha má, pobre e desprezada (a alma humana); tudo o que pertence a Cristo, toda sua riqueza e glória, é dado à sua noiva, e tudo o que pertence a ela, o pecado, é dado a Cristo, o noivo. Que família feliz será esta, pois a justiça de Cristo é muito maior que os pecados da noiva. O anel de casamento entre os dois é a fé.6 Lutero também define fé como fides apprehensiva Christi – “a fé que se apossa de Cristo”7
A justificação por fé somente, sem obras, sempre tem sido criticada por se afirmar que destrói a ética cristã. A conseqüência de um entendi­mento errado da justificação como libertinagem pode ser vista na outra frente concernente aos camponeses, a frente antinomista. Mesmo o cren­te precisa da lei reveladora de Deus, porque ele continua sendo um peca­dor, apesar de a justiça de Deus ser contada em seu favor. Portanto, o pecado não é apenas perdoado, mas também precisa ser lançado fora. Arrastar-se diariamente para o batismo significa que somos chamados a considerar-nos mortos para o pecado (Rm 6.11). Cristo não nos trouxe apenas gratia, mas também donum, o dom do Espírito Santo que luta contra o pecado. Assim sendo, os dois lados não podem ser separados: pelo amor de Cristo somos declarados justos e somos feitos justos; justi­ficação imputada e efetiva é apenas uma, vista de ângulos diferentes.

4 WA 40 Il,328, 17.5 Cf. A.Peters, Rechtfertigung, Handbuch Systematischer Theologie 12, Gütersloh 21990, 35.6 WA 7, 20ss.7 Cf. lbid. 26.25.

A justificação é o único meio que proporciona paz a uma consciência atormentada, porque é baseada no extra nos da obra de Cristo. É o único meio de encontrar certeza da fé, porque não depende das obras do homem que nunca são suficientes, mas na morte e ressurreição de Cristo. Como Deus é fiel, podemos descansar completamente na sua promessa. Justificação foi conquistada por Cristo na cruz. Porém, não teria valor se não fosse distribuída e administrada. Isto acontece pela proclamação do evangelho, pela palavra de absolvição que segue a confissão e pela ceia do Senhor. Por estes meios, o próprio Cristo exaltado, no poder do Espí­rito Santo, distribui o fruto de sua morte e ressurreição ao crente.

A Justificação conforme o Concílio de Trento

O parecer do Concílio de Trento (1545-1563) sobre a Justificação foi apresentado no Decretum sobre Justificação (6ª Sessão: 13 de janeiro de 1547).O efeito da Reforma tornou necessária- aos olhos da igreja Cató­lica – a realização deste concílio. A desordem era geral: monastérios estavam se dissolvendo; poucas pessoas ainda sabiam no que deveriam crer e o que deveriam pregar. Portanto, a intenção era reforçar a fé católica declarando em que verdade o cristão deve crer e refutando o que consideravam as heresias da Reforma.Deve-se observar que nem tudo o que é dito está relacionado com o dogma católico romano. A primeira parte é formada por 16 capita (ca­pítulos) e servem como fonte e base para os 33 cânones (cânones) se­guintes, que por si mesmos são dogmas, isto é, sua aceitação é obrigató­ria, necessária para a salvação do verdadeiro cristão católico romano.8 “O sacrossanto, ecumênico e geral Concílio de Trento encarrega-se de expor… a verdadeira e sã doutrina da justificação como foi ensinada por Cristo Jesus, transmitida pelos apóstolos, continuamente preservada pela igreja católica pela direção do Espírito Santo. E ela proíbe muito severa­mente que qualquer pessoa no futuro ouse crer, pregar ou ensinar de modo diferente que o prescrito e declarado pelo presente decretum.”9
Os tópicos mais importantes são a questão do livre arbítrio (cap. 1), a necessidade da preparação para o recebimento da graça e da justifi­cação (cap. 5s.), a graça como qualidade inerente, a fé como fides charitate formata (cap. 7), certeza da salvação (cap. 9.12), o mérito das boas obras (cap.16).A crítica do concílio sobre o ensino da Reforma sobre a justifica­ ção pode ser resumido nestes termos: “Nenhuma liberdade, nenhum \’novo ser\’ verdadeiro, nenhuma ética, nenhum mérito, nenhuma igreja (batis­ mo!).”10A citação de três cânones visa ilustrar a dimensão da lacuna entre os ensinos católico romano e protestante:

Cânone 12: “Quem disser que a fé que justifica é nada mais que confiar na misericórdia divina que perdoa os pecados por amor de Cris­to; ou que é apenas a crença pela qual somos salvos: anathema sit, seja declarado anátema.Cânone 24: “Quem disser que a justificação recebida não é preser­vada ou ampliada diante de Deus por boas obras, mas que estas obras são apenas frutos e sinais da justificação recebida, e que não são também razão para seu engrandecimento: anathema sit.Cânone 30: “Quem disser que cada pecador arrependido, depois de haver recebido a graça da justificação, está absolvido de sua culpa e de seu castigo eterno de modo que não há espaço para qualquer castigo temporal que deva ser pago nesta era ou futuramente no purgatório, an­tes que haja acesso ao reino dos céus: anathema sit.” 11

8 Cf. WA 39 I,82, thes. 12 (cf. Peters, loc. Cit 41, ref.48).9 Todavia, isto não se aplica aos cânones disciplinares: cf. O.H.Persch, Das Konzil von Trient (1545-1563) und die Folgen, in: H.O.Persch, A.Peters, Einführung in die Lehre von Gnade und Rechtfertigung, Darmstadt 2, 1989, 173.10 Cf. Dezinger (ed. P.Henermann), Enchiridion symbolorum …, Freiburg et al., 371991, 1520.11 Persch, op. cit., 208.

A tentativa atual de acomodação da comissão ecumênica com respeito às diferenças da doutrina da Justificação

Seria possível concluir que afirmações tais como as acima citadas são suficientemente claras para perpetuar a lacuna entre as igrejas cató­lica romana e protestante, e que somente a retirada de tais condenações poderiam abrir caminho para aproximação. Isto, no entanto, é impossí­vel para o lado católico romano, uma vez que os cânones são considera­dos obrigatórios, pois têm sua autoridade por meio do Espírito Santo que dirige a igreja, por meio dos apóstolos e, por fim, por meio do próprio Cristo. E, no entanto, a Comissão Ecumênica conclui: “As declarações mútuas de anatematização do século XVI concernentes à compreensão da justificação do pecador – que levaram à separação das duas igrejas – não mais valem para cada uma delas hoje.” 12A comissão tem adotado um procedimento que é caracterizado pelas seguintes perguntas: “Contra quem uma condenação em particular é dirigida? Tal condenação realmente atinge a posição histórica presen­te? Tal condenação se aplica à posição do parceiro hoje? Se assim for, qual é o valor e a importância da diferença ainda existente?” 13Em termos gerais, a comissão afirma uma mudança no relaciona­mento entre as igrejas, causado pelo movimento ecumênico e pelo Con­cílio Vaticano II, um entendimento crescente em ciência bíblica bem corno nas áreas da história da Igreja e da história da Teologia; as condenações do século XVI, com bastante freqüência, surgiam a partir de falta de entendimento ou ignorância da posição do outro.14 Sete áreas estão sen­do examinadas: “depravação da natureza humana”, “concupiscência”, “passividade do homem ao receber a graça de Deus”, “justificação inte­rior ou exterior” (efetiva ou forense), “fé somente ou boas obras”, “cer­teza da salvação”, ” mérito” 15 , levando à conclusão já mencionada de que – julgando teologicamente- as razões para a separação entre as igre­jas católica romana e luterana, baseadas na doutrina da justificação, não mais existem.

13 Cf. K.Lehmann, W. Pannenberg (ed.), Lehrverurteilungen – Kirchen­ trennend?, Vol. 1, Freiburg/Gõttingen 31986, 74.12 Cf. Denzinger, op. cit., 1562.1574.1580.14 Lehmann, op. cit., 15.15 Cf. lbid., 48.

Reações ao documento da comissão ecumênica

Dentre as muitas contribuições provocadas pelo documento, uma merece especial menção.Foi escrita em 1989 por Jörg Baur, professor de teologia em Göttingen, sob o título: “Concordamos sobre a justifica­ção?”16Ao contrário das muitas reações positivas, esta é uma crítica mui­to dura ao método e aos resultados do documento. Baur não hesita em usar forte ironia, incomum neste tipo de debate teológico, por exemplo, quando ele fala em “Tintenfisch Ekumenik” (ecumenismo do polvo) 17 – espalhando tinta e vapor no problema ao invés de esclarecer as pergun­tas!A questão mais criticada por Baur é a concernente ao procedimen­to hermenêutico do documento. Os autores tentam descobrir se as duas partes compreenderam corretamente uma à outra ou não, oferecendo, depois, uma nova compreensão do assunto. Assim sendo, o documento apresenta uma “hermenêutica da hermenêutica”. O que está faltando, no entanto, é perguntar se as duas partes entenderam a justificação correta­mente ou não. Baur lamenta que por causa disto o verdadeiro confronto – entre o homem pecador e o Deus santo – não é levado em considera­ção.Ele relembra o leitor que o Concílio de Trento não falou de dife­renças menores, mas “Roma viu na justificação da Reforma outro Deus além do verdadeiro, fazendo algo completamente diferente do que o ver­dadeiro estava fazendo.”18Sua conclusão é que as diferentes posições concernentes a Deus e o homem são fundamentalmente contrárias. “A diferença está na raiz. Deus e o cristão são definidos de forma diferente.” 19 Enquanto que o Concílio de Trento vê o homem como parceiro de Deus na justificação, onde a graça de Deus e as obras próprias do homem atuam juntas, 20 de acordo com a Reforma Luterana, justificação é obra de Deus somente, onde o cristão apenas se torna um ser por meio de nada como uma creatura verbi, sob a palavra condenadora da lei e o poder criador do evangelho.21 O livreto de Baur, por sua vez, provocou certo número de reações críticas. Um dos principais assuntos abordados tem a ver com o peso das diferenças. A lacuna quebra o fundamento ou acontece num nível menos fundamental? 22

16 Cf. Ibid., 35ss. 48ss17 Einig in Sachen Rechtfertigung?, Tübingen 198918 Cf. Op. cit., 2319 lbid., 3220 lbid., 10921 Cf. Ibid., 6522 Cf. Ibid., 53

A maioria dos teólogos luteranos diria: Não, a lacuna não é fundamental, mas ela pode ser superada, mesmo que alguns problemas ainda fiquem à espera de solução. Mas a unidade da igreja é possível com base neste documento.Isto nos leva de volta à questão inicial: Este aproximação significa perigo ou esperança para a situação de todos os que, como organização, trabalham dentro da igreja luterana?Ao olharmos para a história das igrejas católica romana e luterana, ao considerarmos as conseqüências que o ensino a respeito da justifica­ção tem gerado nelas, podemos dizer apenas o seguinte: A lacuna contínua até o dia de hoje. A ideia da cooperação entre homem e Deus na questão da salvação é muito difundida entre os católicos romanos. Se este catolicismo popular está de acordo com sua interpretação teológica é algo muito diferente. Também não podemos negar que há cristãos dentro da igreja católica romana que crêem em Jesus Cristo de acordo com o ensino da Reforma! Entretanto, o problema continua: O princípio católico de tradição faz com que uma verdadeira ruptura com o velho e um novo começo seja virtualmente impossível. 23 Assim sendo, teremos apenas novas interpretações de antigos dogmas. O perigo está em que, neste processo, as perguntas fundamentais não serão reveladas, serão antes escondidas.No entanto, deveríamos também fazer a pergunta oposta: Quantos cristãos protestantes realmente conhecem a justificação pela fé, quantos vivem como justificados por fé e quantos deles estão realmente seguindo algum tipo de sinergismo? Portanto, é muito importante que façamos uso desta oportunidade em que a justificação voltou ao centro da discussão. Deveríamos proclamar a justificação pela fé no contexto em que trabalhamos, com as pessoas que encontramos. Não deveríamos fazer isto como uma especialidade luterana, mas como o que realmente é: a mensa­gem de evangelho de libertação do pecado, da morte e do diabo por meio de Jesus Cristo. É nisto (e somente nisto!) que nosso assunto traz espe­rança para as comunidades e sociedades nas quais vivemos e servimos.Hoje percebemos que este princípio tem provado novamente sua valida­de, olhando para a rejeição da Declaração de União pelo Vaticano em 24 de Junho de 1998 – o mesmo dia em que as igrejas da Reforma lembram a apresen­tação da Confissão de Augsburgo!

23 Cf. Pühlmann, H.G., Trennt die Rechtfertigungsgslehre wirklich bich due Konfessionen?, in: H. Schütte (Ed.), Einig in der Lehre von der Rechtfertigung, Paderbom, 1990, 16s.Cf. também: Kühn, U./Persch, O.H., Rechtfertigung im Disput, Tübingen, 1991.Lange, D. (Ed.), sberholte Verurteilungen?, Gõttingen, 1991. Mannerma, T., Einig in Sachen Rechtfertigung?, ThR 55 (1990), 325-335; Pfnõr, V., Verworfenun ausgeschlossen wegender Lehre von der Gnade und Rechtfertigung? In: H.Schütte (Ed.), Einig in der Lehre von der Rechtfertugung, Paderbom, 1990, 43-62.Schütte, H. ™Ekumenisches Verstandnis der Rechtfertigungslehre in: Idem. (Ed.), Einig in der Lehre vond der Rechtfertigung, Paderbom 1990, 63-83.

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