Categoria - Histórias Eclesiásticas

UMA HISTÓRIA QUE A HISTÓRIA QUASE NÃO QUER CONTAR

Nelson Gervoni

500 anos se passaram e a Reforma Protestante continua sendo o maior evento na História da Igreja, fato reconhecido até mesmo por católicos e outros segmentos religiosos. A Reforma mudou os rumos do cristianismo, não só no aspecto espiritual e doutrinário, mas no social, cultural, político, econômico e educacional, entre outros. Sem desprezar o puritanismo, movimento oriundo da Reforma inglesa do século XVI, podemos afirmar que depois da Reforma Protestante o fato histórico mais importante tenham sido os grandes avivamentos da primeira metade do século XVIII. Mesmos assim, não há como negar que esses eventos foram tributários desta Reforma.[3]

A Reforma Radical

No entanto, há outro movimento que deixou legados inestimáveis para os evangélicos na história e atualmente, mas que foi negligenciado em sua análise, exceto por especialistas. Trata-se da Reforma Religiosa Radical desenvolvida pelos anabatistas e outros segmentos cristãos que se rebelaram não só contra a Igreja Católica dominante, mas também contra os reformistas clássicos, e que, consequentemente, atraiu a inimizade de católicos e protestantes.

A Reforma radical foi um movimento surgido paralelamente à Reforma Protestante. Numa terminologia política atual podemos dizer que os radicais estavam à esquerda do movimento da Reforma majoritária. Os principais nomes radicais, para citar somente três entre muitos, são Thomas Munzer (c. 1490-1525), ex-seguidor de Lutero, Conrad Grebel (1498-1526), que rompeu com Zuínglio e deu origem aos anabatistas suíços e Meno Simons (1492-1559), cujo trabalho originou a Igreja Menonita, que ainda hoje tem comunidades na Alemanha, na Rússia, na América e no Brasil.[4]

Mas é importante dizer que a terminologia radical não deve ser associada a uma postura intransigente da liderança do movimento, mesmo porque, como mostra a história, os anabatistas é quem foram alvo de intolerância e intransigência impostas por aliados da Reforma magistral. A palavra radical, como sabemos, vem do latim e refere-se a raiz e indicava o desejo de seus participantes de que a Igreja cristã da época voltasse às suas raízes, retomando a pureza originária da Igreja primitiva.

A origem dos anabatistas

O primeiro grupo de anabatistas surgiu em Zurique, Suíça, em 1525. O termo anabatista significa rebatizadores. Receberam esse adjetivo — que inicialmente foi pejorativo, a exemplo do que ocorreu com os seguidores de Cristo que em Antioquia foram chamados pela primeira vez de cristãos — porque rebatizavam aqueles que se achegavam ao movimento, oriundos das igrejas reformadas e católica e que haviam sido batizados na infância. Isso faziam por terem adquirido uma compreensão renovada do discipulado cristão, através da leitura da Bíblia.

Entre os anabatistas, circularam várias correntes, como os irmãos suíços, Hutterites, seguidores de Juan Hut, Juan Denck, o círculo de Pilgram Marpeck, Melchior Hoffman e Munsterites, os discípulos do Herma we Dirk e Obbe Philips e Menno Simons, de onde saem os “menonitas”, que ainda hoje são uma expressão do anabatismo, e sua origem é derivada da reforma radical primitiva.

No ano de 1575, o movimento foi estabelecido em vários grupos, que não pertenciam a igrejas que surgiram durante a reforma oficial. No entanto, eles continuaram a exercer tremenda influência no mundo europeu durante esse período. Atualmente várias denominações cristãs são descendentes diretos dos reformadores religiosos radicais. Quakers, batistas e outros grupos protestantes, por vezes, são teologicamente mais próximos dos anabatistas, que de Lutero, Zwinglio, Calvino e outros reformadores majoritários.

A injustiça da “História”

Possivelmente não houve outro grupo na história do cristianismo que tenha sido julgado injustamente, como os anabatistas do século XVI. Narrativas imprecisas e tendenciosas, juntamente com polêmicas veementes e hostis os levaram a serem qualificados, entre outras coisas, como “enteados da Reforma”, “fanáticos” e ainda “bolcheviques século XVI.” Como disse alguém, a História é narrada do ponto de vista dominante, da caneta de quem venceu. Povos dominados escrevem a sua história, mas sem o destaque obtido pela história dos vitoriosos. No dizer do sociólogo Herbert José de Sousa, o Betinho, há um jeito de fazer a história e um jeito de contar a história. Os anabatista fizeram uma história que a História parece não querer contar.

Mas, apesar disso, diversos fatores despertaram um interesse renovado na história e na teologia dos anabatistas. Especialmente, podemos mencionar o crescimento surpreendente do movimento da “igreja livre” — que defende a separação da Igreja do Estado, a liberdade religiosa e a adesão consciente e voluntária ao discipulado cristão —, bem como o legado histórico e conceitual pelo qual muitas denominações modernas são reconhecidas.

Como dissemos em recente trabalho,

O anabatismo e a Reforma radical são movimentos que se fundem e, embora não predominem nas narrativas da história da teologia protestante, são muito importantes na construção do pensamento cristão e deixaram respeitáveis legados ao movimento evangélico atual. Por exemplo, as igrejas que hoje se negam a batizar crianças, o fazem por herança anabatista; da mesma forma agem ao batizar adultos novos convertidos que vêm do catolicismo, presbiterianismo ou outra igreja que batiza criança.[5]

O anabatismo não é mais considerado um fenômeno estático, místico e extremo, para se tornar um modo de vida desafiador.

O nascimento do anabatismo na Suíça

Quando o monge agostiniano, Martinho Lutero, em 31 de Outubro de 1517, pregou suas 95 teses na porta da igreja de Wittenberg (Alemanha), em desacordo com a teologia católica romana, lançou oficialmente o movimento da Reforma na Europa. Ao mesmo tempo, outro padre alemão, Ulrich Zwinglio, estudava implacavelmente o Novo Testamento em grego, recentemente editado pelo holandês Erasmus. Em 1522, Zwinglio, que era sacerdote em Zurique, tornou-se líder da Reforma Suíça. A personalidade de Zwinglio, o sábio, combinava o humanista e o reformador evangélico. Tudo isso deu graça e força à sua personalidade brilhante.

Em 1524, em torno da pessoa de Zwinglio estavam talentosos jovens humanistas, interessados ​​no estudo dos clássicos gregos, entre eles Conrad Grebel. O envolvimento com a literatura clássica e o contato com o fascinante Zwuinglio tornaram esses brilhantes jovens seriamente interessados ​​na Reforma. Porém, no início de 1525, uma controvérsia pública entre Zwinglio e seus discípulos foi gerada. As diferenças de opinião poderiam ser resumidas nas seguintes posições:

1) Os anabatistas eram simpáticos às demandas dos camponeses que viviam em torno de Zurique, e procuravam uma maior autonomia, econômicas, políticas, sociais e religiosas para as comunidades.

2) Zwinglio, por outro lado, preferiu permanecer ligado ao Conselho Urbano e conceder-lhe toda a autoridade, inclusive em assuntos religiosos. O Conselho de Zurique denunciou os “religiosos radicais”. O pequeno grupo tinha três alternativas: contentar-se com Zwinglio, sair de Zurique ou enfrentar a prisão.

Os primeiros rebatizados

Em meio a esta controvérsia, na noite de 21 de janeiro de 1525, alguns homens foram decididos à casa de Felix Manz, perto da Catedral de Grossmunster, em Zurique. A crônica dos Irmãos Huteristas relata: “Os irmãos se reuniram ali, orando fervorosamente na esperança de que Deus lhes mostraria a Sua vontade divina e misericórdia. Depois de orarem, Jorge Blaurock se levantou e pediu a Conrad Grebel para batizá-lo no verdadeiro batismo, por imersão. Na ausência de um ministro ordenado para essa tarefa, Conrado Grebel começou a batizá-lo e, por sua vez, Jorge Blaurock batizou todos os que estavam presentes, com base na confissão de viver como verdadeiros discípulos de Cristo, separados do mundo, ensinando o Evangelho e mantendo a fé”.

Com este primeiro batismo, pode-se dizer que o anabatismo nasceu na Suíça e com ele foi formada a primeira congregação dos irmãos suíços. Da perspectiva anabatista, esse foi o fato mais revolucionário da Reforma. Nenhum outro evento significou a ruptura mais lógica com o sistema religioso estabelecido. Pela primeira vez na história da Reforma, um grupo de cristãos ousou formar uma igreja de acordo com o modelo neotestamentário. A consumação do batismo dos crentes não foi uma decisão precipitada. Foi o culminar de uma investigação séria da Palavra de Deus e, ao mesmo tempo, uma expressão de desacordo com Zwinglio e seu programa de reforma do estado.

A perseguição aos anabatistas

A importante reunião de 21 de janeiro de 1525, que deu origem ao nascimento do anabatismo na Suíça, ocorreu sob ameaça de perseguição. Os membros desse grupo eram conhecidos como anabatistas (re-batizados), embora preferissem se chamar de irmãos. Em vez de resistir ao decreto do Conselho Municipal contra eles, os irmãos fizeram planos para compartilhar suas novas convicções com outros. Portanto, o primeiro encontro desta igreja foi de natureza missionária. Ao voltar de Zurique para o seu lugar de origem, cada membro tinha que se tornar um elemento multiplicador de suas novas crenças.

Mas, assim como a igreja primitiva, a expansão do anabatismo foi acompanhada de perseguição e martírio. Por que os anabatistas foram tratados tão severamente por católicos, luteranos e reformadores?

Vários fatores contribuíram para essa circunstância infeliz. Em primeiro lugar, tanto nas concepções católicas quanto protestantes, a relação Igreja-Estado era considerada indivisível. Consequentemente, qualquer desvio da igreja recentemente estabelecida era considerado uma transgressão ou crime. Além disso, a piedade era avaliada pelo extermínio de fatos, que nem sempre respondiam a uma genuína experiência de fé. Naturalmente, a prisão e a tortura seguiram a franca confissão de convicções anabatistas, que geralmente culminaram em morte por espada, por afogamento ou por fogo.

Os primeiros mártires anabatistas: sangue, água e fogo

Os crentes que tinham idéias diferentes das posições oficiais começaram a ser perseguidos. A medida do “exílio para os rebeldes” foi anunciada em 18 de janeiro, três dias antes de o primeiro batismo ser celebrado, que deu origem ao nascimento do anabatismo na Suíça. Durante os primeiros dias de fevereiro de 1525, ocorreram as primeiras prisões, multas e tortura. Aqueles que prometeram não se juntar aos anabatistas foram libertados da prisão. No mês de março de 1526, a prisão perpétua havia sido imposta aos “revolucionários”.

O primeiro mártir anabatista executado pelas autoridades católicas da Suíça foi o pregador Eberll Bolt. Ao mesmo tempo, ele é conhecido como o primeiro mártir protestante, porque as autoridades não distinguiam entre protestantes e anabatistas, mas na verdade esse foi o primeiro radical a ser martirizado. Conrado Grebel, um importante líder anabatista, foi preso e condenado à prisão perpétua. Ele escapou da prisão, embora tenha morrido pouco depois, por causa da peste, em 16 de agosto de 1526.

Em 5 de janeiro de 1527, a primeira pena de morte foi aprovada por um governo protestante, com o sufocamento de Felix Manz, nas águas do rio Limmat. Ele foi jogado na água por defender a fé anabatista. No mesmo dia em que Manz foi afogado, Jorge Blaurock foi severamente espancado. Mais tarde ele saiu de Zurique e foi para Berna para dar testemunho de sua fé. Em 14 de agosto de 1529, em Innsbruck (Áustria), Blaurock e Juan Langegger foram presos e torturados. Em 6 de setembro de 1529, eles foram queimados na fogueira. Foi assim que, com sangue, água e fogo, a fé anabatista foi escrita e selada desde os seus primórdios.

Mas deve ser registrado que os anabatistas tiveram a reputação manchada, em certa medida, pelos acontecimentos na cidade alemã de Münster, entre 1532 e 1535. Sob a influência de Melchior Hoffman, que havia anunciado o fim do mundo para aqueles dias, alguns anabatistas se comportaram de forma intolerante. Em consequência disso foram todos assassinados por soldados de um exército católico. Mas na Holanda, os anabatistas tiverem em Menno Simons (1496-1561) um líder sensato e equilibrado, que deu origem aos irmãos menonitas. Outro importante líder, com bom senso e equilíbrio foi Jacob Hutter (†1536), atuante na Morávia. Os menonitas e os huteritas viviam em colônias, tendo tudo em comum, a exemplo da Igreja do primeiro século. Mas também foram cruelmente perseguidos em toda a Europa e muitos deles eventualmente fugiram para a América do Norte.[6]

REFERÊNCIAS:

DE MATOS, Alderi Souza. A reforma protestante do século XVI. Vox Faifae: Revista de Teologia da Faculdade FASSEB, v. 3, n. 1, 2011.

GARCIA, R. O. Soy cristiano evangélico anabautista: una interpretacion de la Reforma Radical del siglo XVI. Colecion Historia Abierta. Santafé de Bogotá – Colombia: Ediciones Clara, 1998.

GERVONI, Nelson. Curso de aperfeiçoamento pedagógico para um ensino de excelência: conceitos, princípios e a psicologia da educação. Campinas: Editora Sã Palavra, 2018.

[1] Adaptado, ampliado e traduzido por Nelson Gervoni de: GARCIA, R. O. Soy cristiano evangélico anabautista: una interpretacion de la Reforma Radical del siglo XVI. Colecion Historia Abierta. Santafé de Bogotá – Colombia: Ediciones Clara, 1998.

[2] Nelson Gervoni é teólogo e pastor anabatista, pedagogo com especialização em relações interpessoais na escola, psicanalista e jornalista. É autor de três livros e professor convidado no Curso de Aperfeiçoamento Pedagógico da AETAL.

[3] GERVONI, 2018.

[4] GERVONI, 2018, p.53.

[5] GERVONI, 2018, p.53.

[6] DE MATOS, 2011.

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