Categoria - Antropologia Bíblica

DECISÕES QUE ENVOLVEM A CONSCIÊNCIA 1CO 10:23

Magno Paganelli

Introdução

“Todas as coisas me são lícitas, mas nem todas as coisas convêm. Todas as coisas me são lícitas, mas eu não me deixarei dominar por nenhuma.” (1Co 6.12)

Paulo, escrevendo 1 Corintios 10, tratou de um tema caro ao cristianismo, que também é importante para outras religiões e a sociedade de modo geral: a liberdade. Para o apóstolo, liberdade plena é a liberdade cristã, aquela que somente Cristo pode prover, porque envolve a libertação espiritual do fardo do pecado, muito além do simples direito de ir e vir.

O contexto onde ele elabora sua argumentação sobre a liberdade cristã precede as questões que envolvem a Santa Ceia, as quais tratará no capítulo seguinte. A discussão subjacente é a relação entre a cultura, um produto da ação humana, e a liberdade cristã, um estado da natureza espiritual. No recorte proposto no presente artigo (1Co 10.23–11.1), Paulo utiliza por seis vezes a palavra “consciência” em apenas quatro versículos. Ele faz uma interessante relação entre a consciência do cristão e as obras da criação de Deus. Vejamos o texto a seguir:

23“Todas as coisas me são lícitas,[1] mas nem todas as coisas convêm; todas as coisas me são lícitas, mas nem todas as coisas edificam. 24Ninguém busque o proveito próprio; antes cada um [busque] o que é de outrem. 25Comei de tudo quanto se vende no mercado, sem perguntar nada, por causa da consciência. 26Porque a terra é do Senhor e toda a sua plenitude [citação do Sl 24.1]. 27E, se algum dos incrédulos vos convidar, e quiserdes ir, comei de tudo o que se puser diante de vós, sem nada perguntar, por causa da consciência. 28Mas, se alguém vos disser: Isto foi sacrificado aos ídolos, não comais, por causa daquele que vos advertiu e por causa da consciência; porque a terra é do Senhor, e toda a sua plenitude. 29Não estou falando da tua consciência, mas da consciência do outro. Pois por que há de a minha liberdade ser julgada pela consciência de outrem? 30E, se eu com graça [ou com ação de graças] participo, por que sou blasfemado naquilo por que dou graças? 31Portanto, quer comais quer bebais, ou façais qualquer outra coisa, fazei tudo para glória de Deus. 32Portai-vos de modo que não deis escândalo nem aos judeus, nem aos gregos, nem à igreja de Deus. 33Como também eu em tudo agrado a todos, não buscando o meu próprio proveito, mas o de muitos, para que assim possam ser salvos. 11.1Sede meus imitadores, como também eu de Cristo.”

Vejamos a seguir as bases sobre as quais Paulo está fazendo suas considerações e o que resulta de suas reflexões.

1. A liberdade de consciência

Mais do que ensinar regras e restrições sobre alimentos proibidos, dias de festas a serem respeitados ou os rigores de uma religião impositiva, um dos pontos fortes da argumentação que Paulo desenvolve nesta parte da epístola é o ensino de que, se a terra pertence ao Senhor, se todos os alimentos foram criados por Deus e nós somos seus filhos, comprados pelo sangue do Cordeiro de Deus, então não há motivo pelo qual sermos privados de todos os alimentos, porque os mesmos são bons. Como diz Gênesis 1.31: “E Deus viu tudo o que havia feito, e tudo havia ficado muito bom. Passaram-se a tarde e a manhã; esse foi o sexto dia” (ênfase minha).

Sendo os alimentos criados por Deus muito bons, podemos perguntar que mais o Senhor criou que é bom? O próprio versículo de Gênesis, observação feita no sexto dia da criação, diz que tudo o que foi criado por Deus é bom. Toda a natureza, a família e seus relacionamentos internos, as diferenças entre os povos (planejada por Deus), certos objetos naturais etc.

Mas Deus não criou as culturas, pois essas são criações humanas feitas por pessoas caídas no pecado – ainda que nem tudo o que é cultural seja intrinsecamente mau.

Em algum momento da história alguém entendeu que determinado alimento, determinada família, determinada cultura ou determinada diferença entre pessoas e etnias, determinado objeto ou ritmo musical deveriam ser dedicados ou oferecidos a um deus ou ídolo falso e, fazendo assim, tornar isso proibido aos homens por serem sagrados ou tabus.[2]

Paulo parece querer apontar para a existência de uma cultura religiosa que priva ou limita a condição espiritual de pessoas que são livres, mas que isso não vem de Deus, não procede do código legal do Senhor, “porque a terra é do Senhor e toda a sua plenitude.” (Sl 24.1). Apesar da Queda, Deus ainda é o Senhor de toda a terra e de suas criaturas. Se todas as coisas foram feitas por Deus e são dele em toda a sua plenitude, então tudo é lícito, porque tudo pertence ao Senhor!

Paulo vai longe no raciocínio, mas faz uma ressalva: “Nem todas as coisas convêm”. Ele parece titubear em sua convicção tão ampla e aparentemente refinada, e será que irá capitular diante da vigorosa declaração de que todas as coisas pertencem ao Senhor? Na mesma linha da argumentação de Paulo, uma afirmação feita por Jesus pode lançar luz para compreender as implicações da questão. Ele disse: “A quem fizer tropeçar um destes pequeninos que creem em mim seria melhor se lhe pendurasse no pescoço uma pedra de moinho e afundasse nas profundezas do mar.” (Mt 18.6).

A afirmação de Paulo não pode ser tomada ao pé da letra sem a devida consideração de que liberdade pressupõe responsabilidade. O cristianismo de Paulo não é aderente a libertinagem, que seria a total e completa eliminação das travas morais e impedimentos éticos na vida do cristão. Ele tem considerações a fazer sobre o entendimento da liberdade, e nem por isso irá produzir uma doutrina medíocre de negações e proibições.

Conviver com pessoas que pensam diferente de nós, como é o caso das igrejas, e ter temor a Deus, como é recomendado a toda pessoa, exige o respeito aos limites que a presença do próximo impõe e amplia o nosso conhecimento sobre liberdade cristã e a liberdade espiritual.

No nível da consciência, como Paulo coloca no texto, o que as pessoas que nos observam pensam de nós? Pertencendo à mesma igreja ou comunidade, buscamos as mesmas coisas e por certo devemos ter (ou seria recomendável) um comportamento parecido. Mas a Igreja de nossos dias já desacostumou disso. Abrimos mão dos valores cristãos básicos e das convicções comuns para parecermos agradáveis a sociedade ou para não sermos considerados inconvenientes ou intolerantes.

2. Por que o homem se impõe limites ou por que há limites ao homem?

Em linhas gerais, as religiões estabelecem limites, interdições e tabus, a fim de limitar relações, espaços e acessos aos seus membros. O judaísmo, como vemos no Decálogo, é uma religião de proibições ou de negação: Não mate, não dê falso testemunho, não trabalhe no sábado etc. O cristianismo inverte a lógica judaica dando liberdade ampla, mas com ressalva. Todas as coisas são lícitas, mas… nem todas convêm. A compreensão que se tem da graça no cristianismo é mais refinada. Não que a graça estivesse ausente antes de Cristo; ela sempre esteve disponível, mas as condições não estavam reunidas para a plena realização que decorre do favor de Deus, que foram encontradas somente em Cristo.

A resposta imediata que poderíamos considerar para o motivo das limitações é por causa do pecado. A primeira limitação que o pecado impôs foi o acesso ao jardim. Em seguida, veja o que aconteceu em Babel, quando o homem limitou seu campo de ação em função do desejo pelo poder e Deus limitou a comunicação entre todos. Depois vieram as limitações da Lei, que davam ênfase ao pecado (não faça isso, não faça aquilo).

O pecado está na raiz da religiosidade que existe à margem da liberdade de Deus. Toda espécie de religião que insiste nas proibições nega a “liberdade dos filhos de Deus” (Rm 8.20,21). As normas e proibições que criamos revelam o nosso estado de pecado: a lei só é necessária quando há transgressão. Leis que limitam são criadas quando determinado crime está incomodando. Mas as Leis são feitas na tentativa de mudar o comportamento transgressor. No Antigo Testamento, em determinados momentos, Deus disse que os sacrifícios a Ele oferecidos causavam náuseas (Is 1.11; Am 5.21), porque não havia qualquer sinalização da parte do homem de que havia aprendido a lição que os sacríficos deveriam ensinar.

No Novo Testamento, a mulher samaritana revela a mesma situação de desconhecimento e limitação a respeito dessa ampla graça e do fato de que o Senhor é um ser onipresente. Ele perguntou a Jesus (Jo 4) onde deveria adorar, no monte Gerizin, em Samaria, ou no monte Moriá (ou monte do Templo), em Jerusalém. Jesus respondeu que em nenhum desses lugares. A liberdade de culto estava raiando e as limitações geográficas e ritualísticas sendo desfeitas.

O pecado, embora dê prazer a carne, é um redutor e limitador da sua liberdade, ainda que a sociedade pense que a liberdade está em poder pecar à vontade e fazer o que quiser. Portanto, é legítimo perguntar pelas proibições que impomos, pois elas revelam os pecados que cometemos. Se avaliarmos os nossos procedimentos e identificarmos as limitações e proibições diante de nós, veremos que elas são resultado do nosso pecado. Se fizermos isso, nós os conheceremos, saberemos exatamente quais os tipos de transgressões que temos cometido.

Em 1Corintios 10, Paulo demostra isso por meio das exigências alimentares vinculadas ao culto religioso. O mesmo alimento pode ser proibido numa tradição religiosa e liberado a outra. Ora, alguém está fazendo a coisa errada! Veja o v. 27, que diz: “E, se algum dos incrédulos vos convidar, e quiserdes ir, comei de tudo o que se puser diante de vós, sem nada perguntar, por causa da consciência” (ênfases minhas). Paulo não diz que devemos rejeitar por causa de demônios, como dizem em nossas igrejas. Demônios são mais poderosos do que o Senhor? Certamente que não. Então, sendo Deus o Senhor da Criação, demônios não deveriam limitar a liberdade dos filhos de Deus de provar os manjares criados para o nosso próprio deleite e desfrute.

3. Procurando o equilíbrio

Jesus trouxe consciência da plena liberdade disponível para o pecador quando ofereceu a ele o perdão. Parece contraditório, mas não há como exercer liberdade com responsabilidade enquanto não tomarmos consciência dos problemas que o abuso da liberdade pode causar contra a nossa própria vida. Só quando estiver cônscio desse quadro, o cristão maduro e perdoado esbanjará liberdade a ponto de não limitar a sua própria consciência por questões inúteis.

O cristão, segundo Paulo, deve limitar sua liberdade apenas por causa da consciência do outro: “Todas as coisas me são lícitas, mas nem todas as coisas convêm; todas as coisas me são lícitas, mas nem todas as coisas edificam. Ninguém busque o proveito próprio; antes cada um [busque] o que é de outrem” (1Co 10.23-24; ênfase minha). Então, logo à frente, no versículo 31, ele arremata: “Portanto, quer comais quer bebais, ou façais qualquer outra coisa, fazei tudo para glória de Deus”. Neste ponto, Paulo transcende as questões alimentícias ao incluir “fazei tudo”: ele escolhe estar ao lado do Senhor, autor de sua liberdade, e abandonar as restrições humanas e ritualísticas de quaisquer natureza.

Certamente devemos seguir o conselho de Paulo e o exemplo daquilo que Cristo fez ao olhar e preocupar-se não consigo, mas com o próximo:

“Não atente cada um para o que é propriamente seu, mas cada qual também para o que é dos outros. De sorte que haja em vós o mesmo sentimento que houve também em Cristo Jesus, Que, sendo achado em forma de Deus, não teve por usurpação ser igual a Deus, Mas esvaziou-se a si mesmo, tomando a forma de servo, fazendo-se semelhante aos homens; E, achado na forma de homem, humilhou-se a si mesmo, sendo obediente até à morte, e morte de cruz. Por isso, também Deus o exaltou soberanamente, e lhe deu um nome que é sobre todo o nome; Para que ao nome de Jesus se dobre todo o joelho dos que estão nos céus, e na terra, e debaixo da terra, E toda a língua confesse que Jesus Cristo é o Senhor, para glória de Deus Pai.” (Fp 2.4-11; ênfases minhas)

Considerações finais

Em primeiro lugar, diante de todo esse quadro de despojamento pessoal e atenções voltadas para o próximo, não para o que é propriamente nosso ou de nosso interesse, penso que devemos assumir séria e responsavelmente a nossa posição de cristãos, com os valores da “nossa sociedade”, que é a Igreja, diante de uma sociedade que anseia poder enxergar isso em nós. Fazer isso significa e implicará respeitar a consciência do outro, uma vez que estivermos pensando na salvação deles por meio de nosso próprio testemunho. Isso é evangelização e missão.

Em segundo lugar, precisamos fazer uma reflexão profunda e sólida, crítica e piedosa, sobre a nossa condição no mundo: nosso pecado, as limitações que nos impomos, questionando se elas realmente são fruto de pecado, e, só assim, assumirmos a liberdade a ser desfrutada, pois do Senhor é a terra e a sua plenitude.

Precisamos escolher o Senhor, alinharmo-nos às suas perspectivas, e só faremos isso quando pensarmos a partir dos seus pressupostos, não de nossas criações doutrinárias à margem daquilo que Jesus um dia conquistou para nós no Calvário.

“Amados, insisto em que, como estrangeiros e peregrinos no mundo, vocês se abstenham dos desejos carnais que guerreiam contra a alma. Vivam entre os pagãos de maneira exemplar para que, mesmo que eles os acusem de praticarem o mal, observem as boas obras que vocês praticam e glorifiquem a Deus no dia da sua intervenção.” (1Pe 2.11,12)

[1] Do grego (transl.) panta exestin: tudo permitido, tudo possível, tudo apropriado.

[2] Tabu é expressão usada nos estudos das religiões para indicar algum objeto, linguagem ou outra coisa vedada àqueles que não são iniciados, isto é, não são xamãs, sacerdotes, oficiais em determinada tradição ou sistema religioso.

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