Categoria - Mordomia e Serviço
O CONCEITO DO CORPO A PARTIR DO NT
Magno Paganelli
Introdução
Em anos recentes, notamos o crescimento de certa produção literária, pregações e o surgimento de abordagens teológicas que discutiam qual a correta interpretação sobre a real composição da natureza humana, ou seja, que aspectos pessoais de composição podem ser identificados e relacionados ao homem integral.2
Duas posições são as mais consideradas no discurso teológico, quais sejam a dicotômica e a tricotômica. Os simpáticos ao modelo dicotômico definem o homem, a exemplo dos tricotômicos, como formados por uma parte material e outra imaterial ou espiritual. Esse modelo assemelha-se muito ao dualismo grego que pensava o mundo a partir da tensão entre duas forças ou pólos antagônicos: bem e mal, luz e trevas, divino e humano entre outros. Mas tem algum apoio no pensamento judaico do Antigo Testamento, uma vez que o texto de Gênesis 1-2 indica que o Senhor soprou o fôlego de vida no boneco recém formado e este veio a ser alma vivente, o aspecto imaterial da pessoa humana. A partir daí os judeus entendiam o ser humano como a integração de um corpo material com um corpo físico.Aqueles que apoiam o modelo tricotômico definem o homem como um ser formado por três elementos (ou partes), e na maioria apoiam-se no seguinte texto paulino: “E o mesmo Deus de paz vos santifique em tudo; e todo o vosso espírito, e alma, e corpo, sejam plenamente conservados irrepreensíveis para a vinda de nosso Senhor Jesus Cristo” (1Ts 5.23; ênfases acrescentadas).A partir dessa distinção feita por Paulo, os partidários da tricotomia inferem que o âmbito espiritual ou imaterial do homem divide-se em dois aspectos ou partes, o espírito e a alma.Um texto que contribuiu ainda mais para a difusão do conceito tricotômico foi a publicação da Bíblia Comentada por C. S. Scofield. Nela, algumas de suas notas de rodapé dão conta das definições de cada parte do homem, dividindo-o em três áreas, a partir desse texto de 1 Tessalonicenses 5.23. Outros, ainda, recorrem a uma analogia feita a partir da doutrina da Trindade, a fim de explicar seu ponto de vista comparando-o ao modo como explicam a diversidade de pessoas na unidade de Deus.Diante de tal questão, iremos recorrer à exegese de um texto no Novo Testamento e procurar entender qual o real sentido que as Escrituras dão ao tema e o que pensava Paulo quando se referiu ao aspecto material e imaterial do homem.Para isso, vamos retornar ao cenário de onde o cristianismo extrai os elementos fundantes de sua teologia, ou seja, o judaísmo.Havia um conceito judaico de corpo?Na Criação divina, encontramos o provável ponto de partida para compreender a mente judaica no que concerne a totalidade do homem. O relato bíblico nos informa que o Criador modelou o homem a partir do pó da terra, mas nesse ponto o Criador não tinha, ainda, um ser que pudesse ser chamado homem na mais plena acepção da palavra. Ele tinha, isso sim, um boneco sem vida e dizer que não tinha vida equivale a dizer que não se podia esperar nada desse “objeto”. Ele não respondia a estímulos, não fazia qualquer tipo de comunicação, não reagia, não imaginava, não pensava, não podia comunicar-se enfim, ele nada mais é que um boneco de terra. “E formou o Senhor Deus o homem do pó da terra, e soprou em suas narinas o fôlego da vida; e o homem foi feito alma vivente.” (Gn 2.7)O espaço não permite e nem é nossa principal atividade neste trabalho, avaliar as consequências, a natureza nem as implicações teológicas desse fôlego da vida, esse sopro divino que mudou um “boneco” feito do pó da terra em uma alma vivente. Houve uma transformação radical na natureza daquele “ser” que recebeu de Deus o seu hálito, e eu arriscaria dizer que o Senhor soprou no homem a sua própria alma, transmitindo ao pó moldado algo da alma divina, uma natureza que era e é própria de Deus e transportou aquele homem formado do pó para um mundo onde reina a vida. O homem passou a ser mais que um simples homem, mas foi feito alma vivente.Como alma vivente, é dessa maneira que ele passou a ser chamado, visto e tratado ao longo dos textos do Antigo Testamento (AT). Essa foi a principal referência ao homem no pensamento teológico do AT, no pensamento judaico do sacrifício e da expiação, na linguagem forense do povo hebreu.Foi dito que a alma que pecar essa morrerá (Ez 18.4b).
A partir de textos mosaicos, todo judeu compreendia que o objeto do interesse teológico e do interesse do Senhor era a alma. A alma era expiada pelo sangue, mas este recebeu sua vida não do corpo, mas da alma. A vida do homem como um todo está na alma, pois o homem é alma vivente:Porque a vida da carne está no sangue; pelo que vo-lo tenho dado sobre o altar, para fazer expiação pelas vossas almas; porquanto é o sangue que fará expiação pelas vossas almas. (Lv 17.11; ênfase acrescentada)Se entendemos que o AT fala ao homem, mas o faz a partir da perspectiva divina, podemos declarar que o homem é visto e relatado no AT como alma, e alma esta que deve viver. Somente assim é que vemos o interesse de Deus numa alma viva, i.é., que tenha estabelecido um relacionamento real (ou vivo) com o seu Criador. Esta é a vida de que fala toda a Escritura: comunhão, relacionamento e vida para Deus.O homem decaído não procura fazer a vontade de Deus. Isto também está claro nas cartas de Paulo. Quem se submete humildemente ao seu propósito? Somente aquele no qual habita a plenitude da divindade: “Pois em Cristo habita corporalmente toda a plenitude da divindade [gr. tes theotetos].” (Filipenses. 2.9; ênfase e acréscimo meu)Somente Cristo, Deus eterno e bendito, poderia cumprir o decreto do Pai de maneira plena fazendo, assim, com que se “reconciliasse consigo todas as coisas, tanto as que estão na terra quanto as que estão nos céus, estabelecendo a paz” (Cl 1.20).O homem que não mantém nenhuma dessas práticas, o homem afastado de Deus, entregue aos seus próprios caminhos e desejos está, para Deus, morto – não é alma vivente como deveria ser.Corrobora com esta posição o fato, não menos importante, que a língua hebraica não tem uma palavra própria para referir-se a corpo (Shedd) como um todo, somente partes do corpo humano, como as costas ou o ventre, por exemplo. Novamente é preciso ressaltar que os judeus nos tempos bíblicos lidavam com o ser humano partindo do pressuposto de que o homem é um ser único, uma alma, e não um aglomerado de aspectos distintos que, unidos, formavam o homem.Poderíamos imaginar um ou outro motivo possível para isso. Um deles tem a ver com o que afirmei acima, que o AT foi escrito a partir da perspectiva divina e, para Deus, o objeto do seu interesse dentro do plano redentivo é a sua alma. Ao menos é a ela que se referem a maioria dos textos sobre o tema, como por exemplo: “E não temais os que matam o corpo e não podem matar a alma; temei antes aquele que pode fazer perecer no inferno a alma e o corpo.” (Mt 10.28)Vamos, então, a exegese de um texto clássico sobre o tema, 1 Coríntios 15.
ExegeseNo NT, uma das passagens mais utilizadas para tratar o modo como a Igreja entende a questão do corpo é 1 Corintios 15.35–44. Nela, Paulo se serve de uma analogia para explicar a maneira como a ressurreição dos cristãos sucederá. E que analogia é esta? A do corpo material ou terreno frente ao corpo espiritual ou celeste.O que Paulo está tentando ensinar aos coríntios é que, do mesmo modo como uma semente qualquer é lançada na terra e germina após morrer e, assim, dá-se início a uma nova planta (ou vida), assim sucederá também a alguns que aguardam a volta do Senhor. Estes que, na volta do Senhor estiverem mortos, receberão um novo corpo, desfrutarão de uma nova vida, radicalmente diferente da que até então tinham. O mesmo se dá, sem trocadilhos, no terreno das sementes: o que delas germina é radicalmente diferente do que se torna após a sementeira.Muito bem, com isso Paulo introduz o tema e o faz servindo-se de poucas expressões, o que deverá facilitar a nossa exegese. Em linhas gerais, o texto propõe os seguintes jogos de palavras:“Há corpos [gr. soomata, somata] celestes e também corpos [gr. soomata, somata] terrestres.” (1Co 15.40; acréscimos meus)“… o corpo que é semeado…” (1Co 15.42)“… se há corpo natural [gr. sôma yuxikon, soma psychikon], há também corpo espiritual” [gr. pneumatikon, pneumatikon; não há o substantivo grego sôma/corpo] (1Co 15.44b; acréscimos do autor).Paulo estava diante de duas realidades distintas, que são as duas naturezas sobre as quais o texto alude. Há um mundo espiritual ou celestial, como também há um mundo terreno. O que acontece cá encontra um modelo ou equivalente lá, mas são, de qualquer forma, mundos distintos. Tal distinção, no entanto, não o leva a partilhar ou a escolher definições variadas para apresentar sua mensagem.Em outras palavras, Paulo está dizendo que há corpos neste mundo com uma substância ou de uma natureza, e no mundo vindouro igualmente há corpos, porém de outra substância, pois cada qual atende a especificidade de cada mundo. Não devemos nos prender a questão da substância de tais corpos nem a natureza de cada mundo, mas sendo Paulo um judeu educado nos ambientes judaico e helênico, é preciso entender suas explicações para perceber o pensamento corrente. E não apenas o pensamento grego vigente na grande cidade de Coríntio, mas – e principalmente – o pensamento de um judeu que bem conhecia a mente judaica de onde, supormos, extraiu a sua teologia.E o que é possível visualizar do pensamento de Paulo neste texto? Claramente o que também já vimos no pensamento encontrado no AT, que embora exista um veículo material, encontra-se ali uma alma vivente. Quando Paulo diz isso em seu texto? Exatamente quando usou a expressão corpo (gr. sôma). Embora os romanos e os gregos tivessem uma forte propensão materialista, Paulo não se descuidou ao apresentar a sua versão e transmitir o conceito de que, aqui neste mundo ou lá no outro, somos um só ser, uma alma, somos portadores de uma vida. E qual expressão usou para fazer-se entendido? A metáfora da morte e ressurreição.É possível que Paulo tivesse em mente a pessoa integral, como me referi no início, ao tratar aqui o termo corpo. Diferente do judeu que não dispunha de uma palavra para referir-se ao aspecto material do ser, o grego possui esta palavra e a mesma era importante dentro do sistema grego. Assim, Paulo não estava fechando a questão apenas no âmbito material ou físico quando lançou mão do termo corpo, mas quis, comisso, fazer uma referência direta a totalidade do ser. Tanto é que aplicou a mesma palavra num e noutro ambientes, terreno e celeste, ou em suas palavras, natural e espiritual.Paulo não disse que neste mundo temos um corpo palpável e após a ressurreição teremos um espírito ou alma ou mesmo que seremos uma nova entidade (como diriam alguns grupos religiosos). Ele manteve a mesma palavra, como querendo dizer: “Somos um ser que colhe na eternidade o que semeamos nesta vida tal qual nos encontramos!” ou “independente de onde estiver, viva para Deus hoje com a finalidade de que, após a morte, você, você mesmo, não venha a sofrer por causa do atual abandono do seu Criador.”E de fato Paulo tinha Adão em mente, pois chegou ao ponto de mencionar o primeiro homem no versículo 47: “O primeiro homem, da terra, é terreno; o segundo homem, o Senhor, é do céu.”Sua abordagem não desprezou a teologia e o pensamento judaicos; ao contrário, reafirmou-os. E o apóstolo partiu do ponto onde Gênesis iniciou: um homem da terra. Paulo, de certo, pensava em levar seus leitores à compreensão de que estamos trafegando no caminho inverso, i.é., Adão caiu, nós estamos sendo levados de volta, e voltamos para um relacionamento tal com o Criador que é preciso morrer e ressuscitar, ou ainda, “num abrir e fechar de olhos” ressuscitar num corpo espiritual e passar a uma vivência como no princípio.No que tange ao significado léxico do termo sôma (soma) dentro do texto de 1Corintios 15, Gingrich e Danker notam que de fato trata-se de um corpo com vida, e que Paulo, neste texto fala de diversos tipos de corpos.3 Em outros contextos, mesmo dentro do corpus paulinus, a variação do termo não irá esclarecer muito além do que já temos visto.4Resta-nos, ainda, uma questão, que é a posição que 1Tessalonicenses ocupará dentro desse raciocínio. Considerando os argumentos anteriores, o modo como os judeus entendiam a questão, o fato de não fazer sentido Paulo contrariar este aspecto do pensamento teológico de seu povo, é possível arguir que o apóstolo considerasse a existência de “determinadas sedes” ou “centros” na composição ou estrutura humana, mas que nem por isso devesse compartimentar o homem ao ponto de fazer distinções, separações ou mesmo “fatiá-lo” filosoficamente. Os gregos gostavam de tal abordagem, mas Paulo não estava ali para concordar com gregos. Antes, sua missão é fazer entender a seus ouvintes que com uma, duas ou três partes, eles precisavam de um Salvador que os salvasse integralmente. E mais: os já declarados cristãos necessitariam buscar a santificação e a irrepreensibilidade a fim de aguardarem o retorno do seu Senhor.O modo abreviado como lidamos com o tema da dicotomia e da tricotomia certamente nos impede de avaliar os argumentos em favor de uma ou outra posição e ainda os argumentos de estudiosos que consideram o homem uma única estrutura.Mesmo a opção por tratar com a exegese de um único texto, embora notadamente, a meu ver, o mais expressivo de Paulo sobre o assunto, não impediu a compreensão de que o cristianismo veio propor uma reviravolta no estudo da natureza humana. É certo que veio lidar, de modo mais efetivo, a salvação do homem. Mas no que tange a determinadas doutrinas, muitos de nós faríamos bem em buscar nas origens, nas páginas do AT e NT, o modo como tais temas foram tratados.A má compreensão de determinados pontos como esse podem, como muitas vezes tem ocorrido, interferir na maneira como lidamos com outros pontos da doutrina cristã. Por isso, que o Senhor em sua infinita graça, guie o nosso pensamento pelo caminho que Ele mesmo abriu.
_______________________________________1Este texto é parte integrante da obra Panorama do Novo Testamento, de minha autoria, publicado em 2015 pela Geográfica Editora (Santo André). Todos os direitos reservados.2Neste contexto, a expressão “homem integral” não deve ser confundida com o âmbito da teologia integral, mas com a ideia de integralidade como união das naturezas físicas e espirituais do homem que, somadas, resultariam no homem integral.3GINGRICH, F. Wilbur e DANKER, Frederick W. Léxico do NT Grego/Português. São Paulo: Ed. Vida Nova, 1984, p. 202.4Como em Lc 3.22 e em 1Tm 4.8 () ou em Cl 2.9 () a ideia é corpóreo ou corporal ou corporalmente.
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