Categoria - Epístolas Paulinas

DEUS CONFIA NO HOMEM?

Reflexões em Romanos
Magno Paganelli

Introdução

Romanos é uma epístola de Paulo, isto é uma carta, e certamente, dos documentos produzidos pelo apóstolo, foi o que mais influenciou pessoas na história da Igreja.

Uma rápida espiada em alguns dos comentários feitos sobre ela revela muito sobre o seu poder de influência.

“As epístolas de Paulo são os escritos mais importantes do mundo” (Alexandre Souter). “Romanos é o mais importante livro do mundo” (E. Kasemann). “O escrito mais profundo que existe” (Samuel Coleridge). “O livro mais importante na Bíblia” (Alva McClain). “Esta epístola é […] o mais importante documento no Novo Testamento; o evangelho na sua expressão mais pura” (Martinho Lutero). Dizem que Lutero converteu-se lendo Romanos 5.1. Merril Tenney disse que “Romanos oferece uma vista mais completa e sistemática do coração do cristianismo do que as outras epístolas de Paulo, com a possível exceção de Efésios”.

E não para por aí. John Wesley, em seu Diário, comenta sobre quando ouviu a mensagem do prefácio de Lutero para a epístola aos Romanos: “Por volta de 8h45 senti meu coração ser tocado de maneira um tanto estranha: senti que cria única e exclusivamente em Cristo para a salvação e recebi a convicção de que ele havia removido meus pecados e havia salvado minha vida da lei do pecado e da morte”.

Agostinho, após ler Romanos 13.13-14, escreveu: “Em um instante a luz da confiança inundou o meu coração e toda a escuridão da dúvida se dispersou”. Martin Lloyd-Jones pregou a carta aos Romanos, semanalmente, por 13 anos, de 1955 a 1968, até o capítulo 14.17, produzindo um comentário de 14 volumes com cerca de 5000 páginas. Quando chegou a esse ponto, admitiu não ter condições de prosseguir com o trabalho.

O Documento

Como epístola, Romanos é exageradamente grande para os padrões da época, já que uma carta antiga tinha cerca de 1.300 palavras e Romanos tem 7.114 no original. O que a difere de um livro (como Atos ou Apocalipse) é a estrutura epistolar, a composição que guarda as mesmas divisões utilizadas na escrita de uma correspondência, não como um livro ou outro documento.

Como carta, portanto, deve ser lida como tal. Nela, o “eu” fala ao “tu”, o apóstolo aos seus irmãos de fé e leitores. Mas não devemos subestimar o seu conteúdo, porque se trata da exposição mais densa da doutrina cristã em toda a literatura da época.

O Autor

Indiscutivelmente o autor foi Paulo, o Saulo da cidade universitária de Tarso, que teria se convertido entre 32 e 35 d.C. Ele confessou ter sido fariseu (Fp 3.5) e orgulhava-se de sua origem. Tarso era conhecida pelo silicium produzido na região, usado na vedação de barracas, cuja fabricação era profissão exercida pelo apóstolo (At 18.3).

Com alguma frequência Paulo é acusado de ser machista e intolerante com as mulheres. Foi ele quem reconheceu a importância delas na Igreja. Em seis vezes que o lar é mencionado como sede da Igreja, em cinco (Rm 16.5,14-15; 1Co 16.19; Cl 4.15; Fm 2) o nome de uma mulher é mencionado em suas cartas. Paulo comparou o ofício da esposa à característica da Igreja na sua relação com Cristo, quando disse: “A mulher é a glória do homem” (1Co 11.7). A única vez que Paulo fez referência à encarnação de Cristo, ele não se referiu a Jesus como filho de José, o home, mas como “nascido de mulher” (Gl 4.4).

Para Paulo, a mulher crente santifica o marido (1Co 7.14) e “o marido incrédulo é santificado no convívio da esposa”. E ainda: “As mulheres sejam em tudo submissas a seus maridos” (Ef 5.24). Neste último texto, Paulo quer que elas estejam submissas a um homem que ama a sua esposa como a si mesmo e esteja pronto a sacrificar-se por ela, como Cristo sacrificou-se pela Igreja (Ef 5.25), de modo que não há o que desabone o apóstolo, conforme acusações feitas por feministas querem fazer parecer.

A Teologia de Paulo: o Cristo Ressuscitado

A Teologia do autor de Romanos usa com frequência a locução “em Cristo”, que aparece em todas as suas cartas (exceto em 2Ts). Paulo jamais usa “em Jesus”, mas sempre elabora a sua teologia considerando o Senhor já ressuscitado. Veja os seguintes exemplos.

As igrejas da Judeia estão “em Cristo” (Gl 1.22); a igreja de Tessalônica está em “Deus Pai e no Senhor Jesus Cristo” (1Ts 1.1). Os filipenses são designados como “os santos em Cristo Jesus” (Fp 1.1). Os colossenses eram “santos e fieis irmãos em Cristo” (Cl 1.2) e os oficiais da igreja em Tessalônica eram os “que presidem no Senhor” (1Ts 5.12).

A locução “em Cristo” de Paulo leva em conta os efeitos da ressurreição na vida daquele que tem fé. A redenção existe em Cristo (Rm 3.24); o amor de Deus está em Jesus Cristo (Rm 8.39); todos serão vivificados em Cristo (1Co 15.22); a nova criatura está em Cristo (2Co 15.22); a reconciliação foi feita por Deus em Cristo (2Co 5.19); somos santificados em Cristo (1Co 1.2); batizados em Cristo (Gl 3.27); somos feitura de Deus criados em Jesus Cristo (Ef 2.10); Deus estabeleceu-se eterno propósito em Cristo (Ef 3.12) Deus nos perdoa em Cristo (Ef 4.32); os crentes morrem em Cristo e em Cristo primeiro ressuscitam (1Ts 4.16).

A locução “de Deus” aparece 59 vezes em Romanos.

Ocasião

Paulo escreveu Romanos para uma igreja que ele mesmo não fundou e que nunca a tinha visitado. O apóstolo se encontrava na cidade grega de Corinto (Rm 15.26; 16.1-2) durante o percurso de sua terceira viagem missionária. Ele aguardava o fim do inverno, quando seria possível navegar para a Síria, levando as ofertas dadas pelas igrejas da Macedônia e da Acaia para os irmãos necessitados em Jerusalém e na Judeia (Rm 15.28).

Como Paulo mesmo escreveu, ele queria muito visitar Roma “muitas vezes” (15.22). Não tinha “campo de atividade” nas áreas já evangelizadas e por isso planejava passar por Roma numa viagem que planejava fazer em direção à Espanha (15.24). Assim, Romanos foi escrita para preparar os corações dos crentes da capital do Império para quando ele passasse pela cidade.

Tema de Romanos em uma palavra: justificação

O tema da epístola sem dúvida é a justificação pela fé. Esse tema, justificação, do modo como Paulo o desenvolve, não significa inserir santidade na vida de um pecador, mas declará-lo santo, pela justiça de Cristo imputada, isto é, aplicada em sua conta (Rm 4.24).

Paulo demonstra como o pecado de Adão passou a toda a humanidade (Rm 5.12) e todos nós pecamos, ficando separados de Deus. Pelo batismo, que sucede a fé, somos identificados com Cristo em união por sua morte e ressurreição, com o intuito de vencer o poder do pecado (Rm 6.1-11). Mesmo sendo batizados, os cristãos podem se escravizar novamente pelo pecado que gera a morte (Rm 6.16,23).

A morte de Cristo nos livra da obrigação de guardar a Lei cerimonial (Rm 7.1-6), que já não tem sentido diante daquilo que Cristo alcançou. A epístola aos Hebreus desenvolve a superioridade de Cristo sobre todas as instituições judaicas.

A Lei não presta o menor auxílio para a santificação (Rm 7.7-25); sua função sempre foi apontar o pecado cometido e dispor a condenação aplicável. Apenas a graça trabalha em favor do crente para a salvação pela fé e essa graça não vem exclusivamente a partir do Calvário, como parece sugerir a abordagem dispensacionalista.

A graça sempre foi atuante entre os filhos de Deus. Quando Adão e Eva receberam vestes de pele (Gn 3.12), foi o Senhor, pela graça, quem providenciou as vestimentas. Quando Noé entrou na arca com sua família e animais, não tendo quem a fechasse pelo lado de fora, foi a mão de Deus, pela graça, quem fechou a porta (Gn 7.16). Quando Abraão estava prestes a sacrificar seu filho Isaque, foi o Senhor quem providenciou o cordeiro para o sacrifício, e fez isso pela sua graça.

Depois do arrependimento e da conversão pela fé e da imputação dos méritos de Cristo no crente, “não habita bem nenhum” em sua carne (Rm 7.18). Não há nenhuma condenação para os que estão realmente “em Cristo”, porque a Lei da condenação foi substituída pelo Espírito da graça (Rm 8.1-15).

Israel

O plano de Deus quando formou um povo no Antigo Testamento era que este povo anunciasse a salvação disponível pela fé. Israel confiou em seus benefícios e não cumpriu o papel devido dentro do acordo com Deus. No entanto, os demais povos precisavam da salvação que Deus queria dar e rejeitou Israel, endurecido, usando essa rejeição (Rm 11.7-12) pode incluir os gentios em seu grande plano de salvar todo aquele que crer em Cristo, seu Filho (Jo 3.16).

Como é fiel, Deus considerou que o Evangelho deveria primeiro ser pregado aos judeus (Rm 1.16), como de fato o foi. Por causa da rejeição de Israel (Mc 1.38), em seguida o Evangelho tem sido pregado aos gentios (Jo 10.27). Futuramente Israel será de novo incluído na graça salvadora de Deus (Rm 11.15,25-26), a não ser que um judeu aceite a Cristo hoje (não necessita abrir mão de sua cultura judaica, apenas receber o Messias prometido). Um dia Deus concluirá seu plano, após entrada a plenitude dos gentios; então todo o Israel da fé será salvo (Rm 11.13-32), mas não o Israel étnico exclusivamente.

Os Gentios são Culpados

Sendo o tema da epístola a justificação em Cristo, naturalmente devemos pressupor haver uma justiça de Deus (Rm 1.17). Para Paulo, “a justiça de Deus se revela no Evangelho”. Os povos gentios são culpados (Rm 1.18-32) por negar ou rejeitar a Deus e as manifestações possíveis por meio de diversos sinais nos séculos anteriores. O conhecimento da ira de Deus se revela “do Evangelho” (Rm 1.17) e “do céu”, de onde ira de Deus está sendo revelada (1.18).

Em linhas gerais, Deus revelou-se à humanidade de quatro maneiras: 1. através da consciência humana; 2. através da criação natural; 3. através de sua Palavra e 4. por meio de Seu Filho.

As razões para a ira são conhecidas. Os gentios conheciam a Deus (Rm 1.21), mas suprimiram a verdade por meio de suas mentiras (Rm 1.18), do mesmo modo como trocaram ou preteriram o Deus imortal pelas imagens (Rm 1.23).

É dito que o problema da humanidade é o pecado (Rm 1.18–3.20). Judeus e gentios são igualmente injustos por causa do pecado: “Não há um justo, nem um sequer” (Rm 3.10). Consequentemente, todas as pessoas são culpáveis perante Deus, o mundo todo é culpado (Rm 3.9-20), de modo que estando todos condenados, Deus pode ofertar a salvação pela graça e aplicar os benefícios da obra da salvação aos que manifestarem sua fé em Jesus.

Paulo consegue, com isso, demonstrar que os gentios são culpados de pecado (Rm 1.18-32) e podem (e necessitam!) receber a graça. Depois demonstra que os judeus estão na mesma situação (Rm 2.1–3.8), podendo Deus usar os mesmos critérios com eles, sem ser apontado como injusto. Então, o apóstolo passa a concluir esta parte da epístola, afirmando que o mundo todo é culpado diante de Deus (Rm 3.9-20), citando passagens do Antigo Testamento que fundamentam a sua conclusão.

Deus, fazendo assim, provê ao mundo um Salvador (Rm 3.21–5.21) suficiente para eliminar o pecado, que é a ofensa contra si. Embora todos sejamos culpados, Deus demonstra Seu amor por nós ao propor essa salvação contra a justa condenação pelo tempo “quando éramos ainda pecadores, [e] Cristo morreu por nós” (Rm 5.8). Ao imputar-nos sua justiça no tempo quando colocamos nossa fé em Jesus Cristo, faz-nos um com o Filho, participantes da justiça que somente ele pode providenciar.

Nenhum outro sistema religioso é acompanhado de uma proposta dessa envergadura. Aqui o cristianismo se eleva no mercado dos bens de salvação (para citar Pierre Bourdieu).

Com a morte e ressurreição de Cristo, a justificação pode ser interpretada (Rm 3.21-31), como de fato é, considerando os ritos e tipos que constam da antiga aliança. Em Cristo, são realizadas as promessas, as profecias e as expectativas antigas. As pessoas de fé das antigas alianças olhavam para a frente, para o futuro, na esperança de que Deus proveria um meio ideal para a salvação. Nós, pessoas de fé da nova aliança, olhamos para trás, para o passado, de onde sabemos que essas coisas aconteceram, e todas, antigas e novas pessoas da fé em Deus, somos salvos pela graça. A justificação finalmente foi revelada (Rm 3.21-26) e vemos isso quando Paulo escreve “mas agora” (Rm 3.21) […] a justiça de Deus tornou-se conhecida (v. 21).

Temos uma justiça de Deus (Rm 3.21), à parte da antiga Lei (Rm 3.21), justiça de Deus que a Lei e os profetas testificam (Rm 3.21), mediante a fé (Rm 3.22).

Resta o processo de Deus em moldar os crentes à imagem de seu Filho, que será desenvolvido pelo autor da carta em Romanos 6–8. No trecho, ele fala sobre a salvação como um processo, não mais como um ato da fé. Somos salvos (justificados e nascidos de novo) no momento em que recebemos Cristo como nosso Salvador. Ao mesmo tempo, Deus começa a nos moldar novamente à semelhança de Seu Filho, a imagem perdida na Queda. Os teólogos chamam a este processo de santificação, a etapa mais longa e permanente na vida cristã, que será concluída somente com a volta do Senhor.

Conclusão

Diante do exposto, resta a pergunta: pode o Senhor confiar em nós, seus filhos na fé? Em caso afirmativo, em que se baseia a confiança que Deus tem em nós?

A resposta pode ser um “sim” retumbante, uma vez que a nossa relação com ele acontece na base de sua própria obra, que é eficaz e segura. Não é possível haver comunhão com Deus fora desse perímetro, e tudo o que acontece dentro das fronteiras propostas por Deus tem o seu aval e o seu selo – além da cooperação do seu Espírito Santo.

Em Romanos 8.15-17 lemos:

“Porque não recebestes o espírito de escravidão, para, outra vez, estardes em temor, mas recebestes o espírito de adoção de filhos, pelo qual clamamos: Aba, Pai. O mesmo Espírito testifica com o nosso espírito que somos filhos de Deus. E, se nós somos filhos, somos, logo, herdeiros também, herdeiros de Deus e coerdeiros de Cristo; se é certo que com ele padecemos, para que também com ele sejamos glorificados.” (ênfases minhas)

E em Colossenses 2.11, lemos: “no qual [em Cristo] também estais circuncidados com a circuncisão não feita por mão no despojo do corpo da carne: a circuncisão de Cristo.” Passagens como essas dão testemunho de como pertencemos a Deus mediante a obra que ele mesmo realizou. Passagens como essas dão, a cada um de nós, a segurança necessária para dar a cada um o descanso que somente um Deus amoroso e salvador pode ofertar, gratuita e generosamente, a todo aquele que nele crer.

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